1 de outubro de 2021

Adeus, Adão Fernando Monquelat, o guardião dos livros

 

Monquelat, morto no dia 22, também foi escritor, pesquisador e uma
figura cativante e agregadora. Foto Nauro Júnior / Agência RBS

Fábio Schaffner (*)

Como escritório de advocacia, funciona bem a sala 201 do Edifício Manhattan, na Rua General Telles, em Pelotas. O problema é a cozinha. Espalhados por todo o lugar, livros, livros e mais livros impedem qualquer acesso, inclusive à área de serviço, abarrotada por mais de 1 mil volumes. Incomodado, o advogado Pablo Monquelat exigiu providências ao vizinho de baixo, não por acaso seu pai, Adão Fernando Monquelat. Num sábado, Monquelat pai pôs-se a separar as obras de valor comercial das destinadas à doação. Ledo engano. Não conseguia se desfazer do acervo, um excerto mundano perto do santuário que mantinha na loja do térreo.

No dia 22 de setembro, um infarte fulminante abreviou a vida de Adão Fernando Monquelat. O livreiro, pesquisador e escritor estava em casa, preparando-se para o banho, quando sentiu um incômodo. Pediu uma aspirina, ofegou e morreu. Foi sepultado na manhã seguinte, no Cemitério Parque, em Capão do Leão. Deixou a mulher, Nóris, o filho Pablo, os netos Otávio e Celina e as enteadas Raquel e Carolina.

Aos 74 anos, Monquelat mantinha há quatro décadas um dos mais renomados sebos do Rio Grande do Sul, a Livraria Monquelat. Reduto de leitores de variadas estirpes, ali não era preciso saber o nome do livro, do autor, muito menos a editora. Não raro, apenas um breve detalhe da capa já bastava para que o conhecimento enciclopédico do anfitrião remetesse à prateleira certa, à localização exata. Na esteira, surgia uma conversa sobre as sutilezas da obra, a vida do escritor, o contexto histórico. Não era uma compra. Era uma celebração da leitura.

Natural de Pelotas, Monquelat forjou a vocação devorando gibis de heróis, fossem extraterrestres com superpoderes, como o Super-Homem, ou caubóis mascarados à la Kid Limonada e Zorro. A paixão se transferiu aos livros quando a mãe, furiosa por causa de uma nota baixa em latim, pôs fogo à coleção.

Monquelat se formou técnico em contabilidade e cursou Psicologia, mas seu destino era fadado às letras. Morou em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre, foi sócio de transportadora e vendeu terrenos no Litoral Norte antes de voltar a Pelotas nos anos 1980 e abrir a Livraria Lobo da Costa. Apaixonado pela literatura cisplatina, abastecia as estantes viajando a Montevidéu a cada dois meses, em busca de novos autores e raridades consagradas.

Em 1992, tamanha devoção à arte de escarafunchar prateleiras poeirentas rendeu-lhe uma das maiores descobertas da literatura nacional. Monquelat encontrou em Montevidéu um exemplar do mítico A Divina Pastora, de Caldre e Fião. Tido como primeiro romance escrito no Rio Grande do Sul e segundo no país, a obra de 1847 estava desaparecida havia mais de um século, tornando-se objeto de culto entre pesquisadores e literatos.

Muito falada, jamais vista, a “novella rio-grandense”, como denominada na folha de rosto, virou enigma, disseminando dúvidas sobre sua própria existência. De volta ao Brasil, Monquelat festejava ter encontrado “o santo graal da literatura gaúcha”. O único exemplar até hoje conhecido foi vendido por Monquelat ao Grupo RBS, que lançou uma segunda edição e expôs o original. O achado tornou Monquelat célebre no circuito livreiro, levando-o a rebatizar o sebo, agora com o próprio nome.

Monquelat também prestou honrosos serviços como escritor e pesquisador. Simoniano adicto, descobriu textos inéditos de Simões Lopes Neto e até mesmo o antigo casarão em que viveu um dos mais importantes autores da literatura regional brasileira. A descoberta impediu a demolição do imóvel, que hoje abriga o instituto dedicado à memória de Simões.

Monquelat desbravou sobretudo a Pelotas dos desvalidos, escrevendo livros que desnudaram o primeiro ciclo econômico gaúcho. Ao revelar como a tortura imposta aos escravizados por estancieiros ditos abolicionistas financiava o fausto dos saraus pelotenses, expôs a hipocrisia do baronato do charque, cujos filhos estudavam em Paris, mas a riqueza provinha da senzala. Suas pesquisas se estenderam ao patrimônio histórico e à poesia, totalizando 13 obras, entre elas duas incursões na ficção marcadas por uma verve despudorada e iconoclasta.

Era no sebo da Telles, todavia, que ele magnetizava os convivas. Sob a sinuosa melodia das composições de Bach, sentava-se à janela e irrigava a charla com um amargo pura folha, observando por cima dos óculos os clientes perderem o controle das horas, imersos em 40 metros quadrados de estantes abarrotadas de livros.

Monquelat era como a boa leitura que tanto prezava: acolhedor. Vai fazer muita falta.

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(*) Fádio Schffner é jornalista, atua no jornal Zero Hora. O texto foi publicado na ZH dia 30 de setembro de 2021.

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