Monquelat, morto no dia 22, também foi escritor, pesquisador e uma figura cativante e agregadora. Foto Nauro Júnior / Agência RBS |
Fábio Schaffner (*)
Como escritório de
advocacia, funciona bem a sala 201 do Edifício Manhattan, na Rua General
Telles, em Pelotas. O problema é a cozinha. Espalhados por todo o lugar,
livros, livros e mais livros impedem qualquer acesso, inclusive à área de
serviço, abarrotada por mais de 1 mil volumes. Incomodado, o advogado Pablo
Monquelat exigiu providências ao vizinho de baixo, não por acaso seu pai, Adão
Fernando Monquelat. Num sábado, Monquelat pai pôs-se a separar as obras de
valor comercial das destinadas à doação. Ledo engano. Não conseguia se desfazer
do acervo, um excerto mundano perto do santuário que mantinha na loja do
térreo.
No dia 22 de setembro, um
infarte fulminante abreviou a vida de Adão Fernando Monquelat. O livreiro,
pesquisador e escritor estava em casa, preparando-se para o banho, quando
sentiu um incômodo. Pediu uma aspirina, ofegou e morreu. Foi sepultado na manhã
seguinte, no Cemitério Parque, em Capão do Leão. Deixou a mulher, Nóris, o
filho Pablo, os netos Otávio e Celina e as enteadas Raquel e Carolina.
Aos 74 anos, Monquelat
mantinha há quatro décadas um dos mais renomados sebos do Rio Grande do Sul, a
Livraria Monquelat. Reduto de leitores de variadas estirpes, ali não era
preciso saber o nome do livro, do autor, muito menos a editora. Não raro,
apenas um breve detalhe da capa já bastava para que o conhecimento
enciclopédico do anfitrião remetesse à prateleira certa, à localização exata.
Na esteira, surgia uma conversa sobre as sutilezas da obra, a vida do escritor,
o contexto histórico. Não era uma compra. Era uma celebração da leitura.
Natural de Pelotas,
Monquelat forjou a vocação devorando gibis de heróis, fossem extraterrestres
com superpoderes, como o Super-Homem, ou caubóis mascarados à la Kid Limonada e
Zorro. A paixão se transferiu aos livros quando a mãe, furiosa por causa de uma
nota baixa em latim, pôs fogo à coleção.
Monquelat se formou
técnico em contabilidade e cursou Psicologia, mas seu destino era fadado às
letras. Morou em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre, foi sócio de
transportadora e vendeu terrenos no Litoral Norte antes de voltar a Pelotas nos
anos 1980 e abrir a Livraria Lobo da Costa. Apaixonado pela literatura
cisplatina, abastecia as estantes viajando a Montevidéu a cada dois meses, em
busca de novos autores e raridades consagradas.
Em 1992, tamanha devoção
à arte de escarafunchar prateleiras poeirentas rendeu-lhe uma das maiores
descobertas da literatura nacional. Monquelat encontrou em Montevidéu um
exemplar do mítico A Divina Pastora, de Caldre e Fião. Tido como primeiro
romance escrito no Rio Grande do Sul e segundo no país, a obra de 1847 estava
desaparecida havia mais de um século, tornando-se objeto de culto entre
pesquisadores e literatos.
Muito falada, jamais
vista, a “novella rio-grandense”, como denominada na folha de rosto, virou
enigma, disseminando dúvidas sobre sua própria existência. De volta ao Brasil,
Monquelat festejava ter encontrado “o santo graal da literatura gaúcha”. O
único exemplar até hoje conhecido foi vendido por Monquelat ao Grupo RBS, que
lançou uma segunda edição e expôs o original. O achado tornou Monquelat célebre
no circuito livreiro, levando-o a rebatizar o sebo, agora com o próprio nome.
Monquelat também prestou
honrosos serviços como escritor e pesquisador. Simoniano adicto, descobriu
textos inéditos de Simões Lopes Neto e até mesmo o antigo casarão em que viveu
um dos mais importantes autores da literatura regional brasileira. A descoberta
impediu a demolição do imóvel, que hoje abriga o instituto dedicado à memória
de Simões.
Monquelat desbravou
sobretudo a Pelotas dos desvalidos, escrevendo livros que desnudaram o primeiro
ciclo econômico gaúcho. Ao revelar como a tortura imposta aos escravizados por
estancieiros ditos abolicionistas financiava o fausto dos saraus pelotenses,
expôs a hipocrisia do baronato do charque, cujos filhos estudavam em Paris, mas
a riqueza provinha da senzala. Suas pesquisas se estenderam ao patrimônio
histórico e à poesia, totalizando 13 obras, entre elas duas incursões na ficção
marcadas por uma verve despudorada e iconoclasta.
Era no sebo da Telles,
todavia, que ele magnetizava os convivas. Sob a sinuosa melodia das composições
de Bach, sentava-se à janela e irrigava a charla com um amargo pura folha,
observando por cima dos óculos os clientes perderem o controle das horas,
imersos em 40 metros quadrados de estantes abarrotadas de livros.
Monquelat era como a boa leitura que tanto prezava: acolhedor. Vai fazer muita falta.
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(*) Fádio Schffner é jornalista, atua
no jornal Zero Hora. O texto foi publicado na ZH dia 30 de setembro de
2021.
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