24 de março de 2022

A mula sem cabeça veio me buscar (na praia do Laranjal...)

Ilustração do arquivo do autor


Benhur Antonio Cruz de Lima (*)


    Era noite de inverno, vento assobiando, chuva fina e o breu da noite era assustador. Cheguei em casa por volta das nove horas da noite. Na época com 24 anos eu nada temia, Nem assombração, nem tempestade e muito menos Saci Pererê e Mula Sem Cabeça.

    Logo que me formei na Universidade Católica de Pelotas, já estava empregado e com dois bons empregos. Era redator e locutor da Rádio Atlântida FM e chefe de jornalismo da RBS TV de Pelotas, o que me garantia uma boa renda para um rapaz solteiro.

    Tratei de comprar um terreno na praia do Laranjal, e comecei a construir uma casa, sem financiamento e sem dívidas. Combinei com o pedreiro que iria construir aos poucos. Projeto de casa simples com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Concluído o fundamento da casa, ele ergueu uma parte que incluía o banheiro e uma peça. Alí fui morar e aos poucos fui construindo o resto da casa.

    Mas o inusitado ocorreu em uma noite chuvosa e gelada de uma quinta-feira. Desci do ônibus da Transportes Santa Maria, no ponto perto da Mercearia Hilda, levantei a gola do sobretudo de lã da marca Alfred, que havia sido de meu pai. Era quentinho e com mais de 30 anos de uso continuava inteiro e aquecendo. Atravessei a avenida e caminhei na pequena rua, encharcada, cheia de buracos, poças enormes que tinha de ir desviando e com fraca iluminação que dava acesso a via onde eu morava. O vento que assobiava entrava pelas frestas dos botões do sobretudo e gelavam o peito, as costas e deixavam as mãos encarangadas. Como se diz no Rio Grande do Sul, era um frio de renguear cusco.

    Entrei em casa, cansado, pois trabalhava das 6h até 20 horas todos os dias. Estava morto. Larguei a indumentária no sofá que servia de cama também, comi um sanduíche e adormeci, ouvindo os uivos do frio cortante.

    Na madrugada gelada acordei com um barulho estranho perto da minha janela. Meio sonolento levantei e fui espiar pelas frestas da veneziana para me certificar que resmungos eram aqueles. Mistura de gemido, crepitar de fogo e relinchos.

    Ao olhar, tive um sobressalto. Me veio a consciência que espantou a sonolência. O coração disparou e fiquei bem quieto. Era assustador. Estendi a mão e peguei o rosário, que ficava pendurado junto a um crucifixo sobre estante de tijolos e tábuas onde eu deixava uma estátua pequena da Santo Antônio, feita em prata, que perdi nas minhas várias mudanças. De joelhos no piso duro, puxei a rezaria. Em certa altura já estava orando em castelhano. 

    Padre nuestro, que estás en el cielo, Santificado sea Tu nombre; Venga a nosotros Tu reino; Hágase Tu voluntad en la tierra como en el cielo. Alternava para o português e suava frio. Me salve dessa! Implorava!

    Isto é coisa mandada, ou chegou minha de hora de prestar contas com o coisa ruim ou com São Pedro. 

    Alí na frente de casa estava me esperando nada menos que a

    Mula Sem cabeça. Uma bola de fogo, queimando, labareda alta na noite escura, que nem mesmo a chuva era capaz de apagar.

    Pensei em sair pela porta dos fundos e correr para a cara do seu João, um bom vizinho que sempre cuidava da casa dos outros nas ausências, mas era distante uns 50 metros. Era a moradia mais próxima. Mas se o trote da bicha for firme eu não conseguiria. Me pegaria no galope. Melhor ficar dentro de casa, rezar e esperar que amanheça.

    Aquela agonia durou algum tempo e a chuva não parava, o vento cortava o silêncio da noite.

    Mas logo se desfez o mistério do além. Quando ouvi sirenes, me animei e abri um pouco a janela, meio desconfiado. Vai que a Mula sem Cabeça me puxa e me leva. Só tinha 24 anos, jovem demais para descer aos calabouços onde governa o Capa Preta.

    Vi uma nova perspectiva. Ai fiquei valente, abri a porta, sai e respirei fundo

    Xô vai te embora daqui! Ordenei dando um tapa na anca do animal. Assustada saiu trotando rumo à escuridão.

    Enquanto isso, do outro lado da rua os bombeiros apagavam um incêndio num casebre abandonado.

    O que era a Mula sem Cabeça? 

    Quando olhei pela fresta vi um animal com cabeça de fogo, mas era um cavalo pastando, de cabeça abaixada e pelo ângulo da fresta da veneziana na minha janela, no lugar da cabeça onde eu via uma bola de fogo, era o incêndio logo adiante.

    Pelo menos a noite serviu para rezar o terço e me precaver. Tratei de colocar uma cerca e uma lâmpada de 100 velas para o lado de fora. Plantei também arruda, espada de São Jorge e joguei no portal da casa um litro de água benta misturada com cachaça de Santo Antônio da Patrulha. Não poupei gastos. Vai que…. Bem... mas hoje é quinta-feira. Estou ouvindo relinchos vou lá espiar pela janela.

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(*) Benhur Antonio Cruz de Lima é jornalista, mora em Santa Catarina, e trabalha na Rádio Joinville Cultural - 105,1 FM. Foi meu aluno, e é um cronista de mão cheia. Esperamos seu livro para qualquer momento. "Foi na rua Herval, no Santo Antonio, na Praia do Laranjal. Fato verídico e verdadeiro", ele afirma!

22 de março de 2022

Os Cem Anos da Minha Mãe

Arquivo da família


Pedro Moacyr Pérez da Silveira (*)

    Minha mãe, que daqui partiu há onze anos, treze após meu pai, estaria fazendo, neste 21 de março, cem anos. Eu nunca mais a verei. Nunca mais verei meu pai. Nunca mais nos encontraremos, seremos pó e, depois, nada. Ela já não vive, ele morto já é, assim como seus pais, meus avós, todos mortos há anos sobrepostos a outros. Mil, dois mil anos passarão, e nada de nós restará em lembrança alguma de alguém da minha espécie (se ela sobreviver, o que não me parece provável).

    Todavia, mesmo que tudo desapareça e o mundo seja formado apenas por estúpidas estrelas dançando a esmo, sem terem sequer o sentido vão que a elas emprestamos com certos esforços da mágica poética que julgamos tanger o sublime quando por aqui vivemos, ah, mesmo que tudo seja o que não é, e que talvez tenha o próprio tudo se tornando uma bolha morrente, exausta, servindo apenas para acomodar um deus único e solitário que tudo criou, mas que perdeu a paciência e também já dá sinais de que deseja se ir, e que sua única criatura restante venha a ser então essa bolha fenomenal, do tamanho que o mundo é hoje, e venha assim o universo a ser um colossal vazio, onde haverá apenas o ar adoecido para este deus triste respirar seu ar empestado e tossir seus arrependimentos, oh, mesmo que assim seja, minha mãe, quando eu nada for e nem a senhora, quando não formos nem recordação n'alguma alma vaga e ainda talvez humana - mesmo aí, nestas condições - quero que a senhora saiba que o pequeno atrito aquecido da sua mão na minha mão produzirá o raro e exclusivo pólen que instalará no meu impossível jardim a planta, linda e imaginária, do amor que um dia recebi de ti, e saberei que planta mais linda não houve, não há e não haverá no que quer que possa existir ou estar sucumbido para sempre. Tuas mãos nas minhas, mãe, tuas mãos nas minhas, quando estes apocalipses terrificantes não assustavam o teu menino porque tuas mãos estavam, aquecidas, sobre as dele. 

    Saudade, mãezinha.
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(*) O professor Pedro Moacyr é doutor em educação, diretor da Faculdade de Direito de Pelotas, e autor do livro a Memória é um cavalo selvagem, a quem foi me dada a honra de escrever a apresentação e fazer a Foto do Autor.



6 de março de 2022

Minha terceira vez


 
Maria Clara Michels Pinho (*)

    Dizem que o terceiro é o melhor. Mais perfeito, mais feliz, mais duradouro...Neste meu caso eu não sei. Ah, peguei vocês! Não, eu não falo de companheiro, marido, amante, namorado ou ficante, destinos dessa assertiva feita. 

 

    Numa tentativa de manter o bom humor e a alegria- que decididamente estado de ânimo é importante- eu estou falando sobre estar mais uma vez, a terceira, com câncer. E estou conseguindo me manter tranquila, rindo muito como sempre, o que fez minha filha me abraçar chorando quando soubemos e dizer que sou a pessoa mais forte que ela conhece.

 

    Na realidade, tão forte como tantos por aí, tanta gente da família e amigos que tiveram ou tem esta doença que antigamente era chamada de " aquela doença ruim", mas que hoje pode ser plenamente curável. E que por ter possibilidade cada vez maior de tratamento e cura, deve ser prevenida, examinada, estudada por nós todos, cada vez mais atingidos devido a estarmos ficando longevos e comendo cada vez pior, alimentos cheios de produtos indesejados, água contaminada, vivendo em ambiente poluído, sempre estressados, sempre correndo...

 

    E é por isso que falo tão claramente sobre essa minha terceira vez. Porque a palavra câncer tem de ser exorcizada, a doença em si não pode ser mais escondida, não deve ser estigmatizada, temos de enfrentar como a qualquer uma outra, sem melancolia, sem lágrimas ( talvez algumas, no início do processo de aceitação), com força e coragem, porque realmente acredito que um ânimo elevado, uma boa disposição ajudam...

 

    E é isso. Cirurgia marcada para terça- feira próxima, com o Dr. Ricardo Haack, que além da competência traz mais alguma coisa para o pacote, pessoa que, com as irmãs, brincou com meus filhos na infância e de quem sempre fui muito amiga da família. E após, acompanhamento clínico com a Dra Silvia Saueressig, outra que tem me acompanhado com carinho e profissionalismo. E, como o Ricardo, é amiga e ainda é prima em segundo grau.

 

    A Ju, a Luna, o Nico, meus cunhados Paulo e Ala me acompanham todo tempo: levam e trazem dos exames, dos consultórios médicos, dos processos de internação e , em casa, não me deixam fazer nada. E as manas também já estiveram comigo oferecendo apoio e ajuda no que for preciso, mas acho que tiramos de letra. Só me restando agradecer.

 

    Como da última vez, há dois anos, o meu pedido: sem choro, sem vela, sem fita amarela. Carinho sim, lamentações não. Nada de mensagens tristes, que triste não quero eu ficar, reze quem for de orações, torça quem preferir , mentalizem os místicos todos e mandem beijos, abraços , o afeto de vocês e só.

 

    É isso que eu quero e é isso que eu espero de vocês. Aqui já estamos todos fortes, dispostos a enfrentar mais essa e a comemorar com muito ruído depois. 

 

    Como disse a Sílvia: pensa que é só mais um. No meu currículo, essa vai ser a 15a. cirurgia . Só mais uma, então. 

 

(Para a mãe, esteja onde estiver: "Estou arredondando, mãe!". Porque ela ia contando a cada vez que me operava e brincava quando se chegava a um número quebrado"  vamos arredondar, vamos arredondar!" E quando tive câncer pela primeira vez e a palavra ainda era um palavrão, há mais de 30 anos, ela me acompanhou a todas as sessões de quimioterapia, sempre preocupada, sempre de mãos dadas...)

 

(*) Maria Clara é Jornalista e mora em Pelotas

2 de março de 2022

Abel agora mora comigo

O livro A História de Abel e o TCC da Giulia

 

Giulia Viapiana (*)

Abel mora comigo há mais de um mês. Nesses últimos tempos eu o observava e sempre lhe dizia: “Abel, tenho que estudar”; “Abel, agora não dá”. Até que nesse feriado, depois da apresentação do TCC, Abel me esperava paciente, com muitas histórias para contar - então corri para o abraço!

A história de Abel é cativante e em uma única tarde de domingo, entre chuva e um calor escaldante, passeei com o tio Vaz pelo Rio Grande. Na Rua Corrientes, 348, entre a navalha Solingen e as velas votivas, até me imaginei voando no Perigo Verde e ouso dizer que nesse ano, sem carnaval, não teremos problemas com o Araçá! Ah, se eu tivesse irmãs mais velhas… talvez hoje comeria Tupy, pois compartilho do mesmo pensamento sobre as marmeladas.

A História de Abel e as memórias do tio Vaz e da dona Loracy são uma brisa fresca nesses dias quentes de verão. Ao fim da leitura, já no agradável final da tarde, me pergunto quem serão os contadores de causos da próxima geração (e teremos histórias para contar?!) e não tenho uma resposta.

Sei que minha futura colega e parceira de debates, Maribel, vai dizer que não existe herança de pessoa viva, mas tio Vaz, amigo que recebo de herança do meu pai, foi um prazer ler tuas histórias!


(*) Giulia Viapiana Corrêa, graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, ávida leitora e atenta ouvinte de histórias. Já atuou na Comissão de Processos Administrativos Disciplinares da UFPel, nas Demandas Judiciais do INSS e na 3ª Promotoria Criminal do Ministério Público. Atualmente desenvolve atividades na Defensoria Pública do Estado.