Ilustração do arquivo do autor |
Benhur Antonio Cruz de Lima (*)
Era noite de inverno, vento assobiando, chuva fina e o breu da noite era assustador. Cheguei em casa por volta das nove horas da noite. Na época com 24 anos eu nada temia, Nem assombração, nem tempestade e muito menos Saci Pererê e Mula Sem Cabeça.
Logo que me formei na Universidade Católica de Pelotas, já estava empregado e com dois bons empregos. Era redator e locutor da Rádio Atlântida FM e chefe de jornalismo da RBS TV de Pelotas, o que me garantia uma boa renda para um rapaz solteiro.
Tratei de comprar um terreno na praia do Laranjal, e comecei a construir uma casa, sem financiamento e sem dívidas. Combinei com o pedreiro que iria construir aos poucos. Projeto de casa simples com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Concluído o fundamento da casa, ele ergueu uma parte que incluía o banheiro e uma peça. Alí fui morar e aos poucos fui construindo o resto da casa.
Mas o inusitado ocorreu em uma noite chuvosa e gelada de uma quinta-feira. Desci do ônibus da Transportes Santa Maria, no ponto perto da Mercearia Hilda, levantei a gola do sobretudo de lã da marca Alfred, que havia sido de meu pai. Era quentinho e com mais de 30 anos de uso continuava inteiro e aquecendo. Atravessei a avenida e caminhei na pequena rua, encharcada, cheia de buracos, poças enormes que tinha de ir desviando e com fraca iluminação que dava acesso a via onde eu morava. O vento que assobiava entrava pelas frestas dos botões do sobretudo e gelavam o peito, as costas e deixavam as mãos encarangadas. Como se diz no Rio Grande do Sul, era um frio de renguear cusco.
Entrei em casa, cansado, pois trabalhava das 6h até 20 horas todos os dias. Estava morto. Larguei a indumentária no sofá que servia de cama também, comi um sanduíche e adormeci, ouvindo os uivos do frio cortante.
Na madrugada gelada acordei com um barulho estranho perto da minha janela. Meio sonolento levantei e fui espiar pelas frestas da veneziana para me certificar que resmungos eram aqueles. Mistura de gemido, crepitar de fogo e relinchos.
Ao olhar, tive um sobressalto. Me veio a consciência que espantou a sonolência. O coração disparou e fiquei bem quieto. Era assustador. Estendi a mão e peguei o rosário, que ficava pendurado junto a um crucifixo sobre estante de tijolos e tábuas onde eu deixava uma estátua pequena da Santo Antônio, feita em prata, que perdi nas minhas várias mudanças. De joelhos no piso duro, puxei a rezaria. Em certa altura já estava orando em castelhano.
Padre nuestro, que estás en el cielo, Santificado sea Tu nombre; Venga a nosotros Tu reino; Hágase Tu voluntad en la tierra como en el cielo. Alternava para o português e suava frio. Me salve dessa! Implorava!
Isto é coisa mandada, ou chegou minha de hora de prestar contas com o coisa ruim ou com São Pedro.
Alí na frente de casa estava me esperando nada menos que a
Mula Sem cabeça. Uma bola de fogo, queimando, labareda alta na noite escura, que nem mesmo a chuva era capaz de apagar.
Pensei em sair pela porta dos fundos e correr para a cara do seu João, um bom vizinho que sempre cuidava da casa dos outros nas ausências, mas era distante uns 50 metros. Era a moradia mais próxima. Mas se o trote da bicha for firme eu não conseguiria. Me pegaria no galope. Melhor ficar dentro de casa, rezar e esperar que amanheça.
Aquela agonia durou algum tempo e a chuva não parava, o vento cortava o silêncio da noite.
Mas logo se desfez o mistério do além. Quando ouvi sirenes, me animei e abri um pouco a janela, meio desconfiado. Vai que a Mula sem Cabeça me puxa e me leva. Só tinha 24 anos, jovem demais para descer aos calabouços onde governa o Capa Preta.
Vi uma nova perspectiva. Ai fiquei valente, abri a porta, sai e respirei fundo
Xô vai te embora daqui! Ordenei dando um tapa na anca do animal. Assustada saiu trotando rumo à escuridão.
Enquanto isso, do outro lado da rua os bombeiros apagavam um incêndio num casebre abandonado.
O que era a Mula sem Cabeça?
Quando olhei pela fresta vi um animal com cabeça de fogo, mas era um cavalo pastando, de cabeça abaixada e pelo ângulo da fresta da veneziana na minha janela, no lugar da cabeça onde eu via uma bola de fogo, era o incêndio logo adiante.
Pelo menos a noite serviu para rezar o terço e me precaver. Tratei de colocar uma cerca e uma lâmpada de 100 velas para o lado de fora. Plantei também arruda, espada de São Jorge e joguei no portal da casa um litro de água benta misturada com cachaça de Santo Antônio da Patrulha. Não poupei gastos. Vai que…. Bem... mas hoje é quinta-feira. Estou ouvindo relinchos vou lá espiar pela janela.
___________________
(*) Benhur Antonio Cruz de Lima é jornalista, mora em Santa Catarina, e trabalha na Rádio Joinville Cultural - 105,1 FM. Foi meu aluno, e é um cronista de mão cheia. Esperamos seu livro para qualquer momento. "Foi na rua Herval, no Santo Antonio, na Praia do Laranjal. Fato verídico e verdadeiro", ele afirma!
Nenhum comentário:
Postar um comentário