Amarildo usava a 20, como reserva, e não teria chances de substituir o Rei |
Com Amarildo
Sérgio Saraiva (*)
Não cabe julgar
nem estabelecer relações de causa e efeito. Muito menos costurar relatos
verossímeis, números e datas exatas. Nem enfiar contas num fio e perder a meada
do que hoje não passa de uma memória tão rarefeita que parece encomendada de um
sonho onde as leis foram abolidas, pra começar, a da gravidade.
Bom. Mas quase
morri na Copa e talvez tenha sido salvo pelo bicampeonato, no Chile. Enquanto
reclamava de uma dor na perna, que apalpada parecia íngua e era levado a um
médico de nome árabe que me acusou de apendicite aguda e me condenou à execução
de uma cirurgia no dia seguinte eu pensava na Copa.
Nunca jogara grande coisa,
mas os grandes lances vistos no cinema, em câmera lenta, embalavam meus sonhos
e pesadelos desde sempre. Era 62 e o futebol agregava novos heróis, de outro
tipo, à bravura dos feitos de agosto de 1961, da Campanha da Legalidade, da
qual me pretendi herói nas minhas invencionices de guri que enfrentou soldados
de baioneta calada no cerco da Prefeitura. Eu estava nos ombros de minha mãe
num episódio. Era tudo festa, euforia e pouca informação pelo rádio.
Mas Pelé
se machucou e baixou naquele povo que me cercava em tão difícil hora um
poderoso desânimo. E lá estava eu, herói ferido injustamente no fundo de uma
cama ainda grogue de anestesia e analgésicos no São Sebastião. Não lembro há
quanto tempo eu estava internado e se meu caso já era grave. Mas foi num gol de
Amarildo, o substituto de Pelé, que me vinguei daqueles frouxos que já
entregavam os pontos sem nem lutar.
O meu herói – e de todas as crianças, creio
– tinha pernas tortas e encantava os narradores, nos encantando por tabela. E
esse desconhecido Amarildo acabaria fazendo gols nem que fosse com as bolas de
Garrincha batendo nele. Nada a temer. Minha comemoração, então, era de um feito
épico, não apenas de um gol. O segundo gol contra a Espanha tinha esse sabor.
Afastava o medo deixado pelo empate com a Tchecoslováquia, nome que eu
pronunciava com absoluta correção apesar dos meus 9 anos incompletos. Meu
salto, meu grito, meu soco no ar era resultado de uma revolta contra os
derrotistas de plantão. No caso, enfermeiras, pessoas convalescentes,
enfraquecidas, e os parentes em visita, além dos comentaristas do rádio.
A
vitória me tirou o direito a comemorações. Tive de fazer mil promessas de bom
comportamento para ouvir o restante da Copa do Mundo. A cirurgia se abriu e
levei mais dois longos meses para vencer uma infecção que só depois soube ser
grave. Passei o resto desse tempo, fora uma tentativa de voltar pra casa que
durou dois dias, num mundo onírico no qual tive notícias da Copa, de nossa
vitória, da taça. E ganhei uma “O Cruzeiro” com as melhores fotos. Uma delas
tinha o Gilmar agarrando a bola na cabeça de um tcheco, de branco, lá em cima,
no alto.
E eu ficava imaginando: um centímetro pra lá, um centímetro pra cá, e
tudo poderia estar perdido. As sequelas da cirurgia atrasaram meu crescimento
por alguns anos. Era o mais baixo em qualquer situação com gente da minha
idade. Mas dos 17 aos 21 cheguei a 1m90cm.
Esse é apenas um dos golaços que
comemoro até hoje.
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(*) Sérgio Saraiva é bageense, jornalista ganhador do Prêmio Jabuti. Cidadão do mundo, mora em Garopada atuando na Rádio Garopaba - 98.3 FM.
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