1 de julho de 2014

Copa de 78, o aperto na garganta



Capa da revista Placar, dezembro de 1981
O aperto na garganta em ‘78 e a
encruzilhada do futebol brasileiro em ‘82

Amilcar Oliveira (*)

O que uma criança de 12 anos sabe sobre ditaduras? Pouco, muito pouco. Principalmente uma criança sonhadora, que se enfurnava nos cantos mais sossegados para ler gibis, livros, e muito, muito, sobre futebol. O que tornava a criança, além do fato de ser criança, ainda mais alheia ao mundo “lá fora”, às voltas com supressões de liberdades, perseguições de toda ordem. A Copa de ‘78 seria na Argentina, outra ditadura danada, e já naquela época um adversário “natural”, seja lá por que motivo. (Desde cedo somos levados a não gostar dos argentinos, mas essas coisas desprezíveis só se explicam com o tempo.) Pois a Copa seria na Argentina e, como sempre, teríamos de ganhá-la. Porque não participamos das Copas, vamos ganhá-las, sempre. Por isso os tombos deixam marcas profundas a cada quatro anos.

O Brasil tinha alguns bons jogadores e um técnico, Claudio Coutinho, que, apesar de considerado um entendido do riscado, conseguiu deixar um Falcão bicampeão brasileiro de fora da lista dos convocados. Levou o Chicão. Pois é. Mas nem por isso finquei pé na secação. Nada. A gauchada boa gosta do Brasil tanto quanto do Rio Grande. E lá fui eu torcer por Leão, Nelinho, Reinaldo, Roberto Dinamite, Dirceu, mais Rivelino e Zico baleados. Foi a Copa do Peru. Quero dizer, da Argentina, após a marmelada com o Peru, que perdeu por 6 a 0, na segunda fase, desclassificando o Brasil. Pensar que no confronto contra a Argentina, em Mar del Plata, tivemos a bola do jogo nos pés do Gil, se não me engano, que chutou em cima do Fillol. O Brasil foi disputar o terceiro lugar com a Itália. Ganhou por 2 a 1, e o que ficou na memória foi a curva da bola após o chute do Nelinho, num dos gols mais incríveis das Copas.

Esses são os detalhes. A sensação geral foi de uma das primeiras grandes frustrações em futebol com a Seleção. Perder nunca foi bom. Mas perder com a certeza de que se foi roubado é muito triste. Lembro-me de levantar após o quarto gol da Argentina contra o Peru e ir dormir. Sabia o que aconteceria no resto do jogo. De certa forma, a ingenuidade foi deixada um pouco para trás naquele dia. Não adiantou torcer pela Holanda na final, a mesma que havia desclassificado o Brasil quatro anos antes. A Argentina ganhou, e eu aprendi que só se torce para o seu time. Quanto aos outros, sangue doce.

Engraçado. Escrevendo isso, percebo que minha primeira frustração não foi em ’78, mas em ’74. Mas desta lembro apenas de fragmentos. De um chute de carrinho do Cruyff e o Leão voando para evitar o gol, inutilmente. Só sei que foi muito ruim. Parece que minhas memórias inesquecíveis sobre as Copas do Mundo sempre serão sobre as derrotas. As derrotas deixam marcas mais profundas do que as vitórias. Talvez porque sobreviver a elas seja mais difícil.

1982

Uma Copa emblemática para minha geração, a de ’82, não me causou tanto estrago quanto em parentes, amigos, conhecidos e cronistas que até hoje lamentam a derrota do que se considera um dos nossos últimos suspiros em futebol-arte. Um dos últimos, porque em ’86, no México, ainda produzimos alguns grandes momentos, com Careca, Müller, Júnior, até cairmos para a França. Aquela derrota de ‘82, combinada com a vitória em ‘94, mudou o futebol brasileiro. Passamos a cultivar o preparo físico, a correria, o resultado. Os jogadores, ou melhor, atletas, falam em “manter a concentração” para ganhar os jogos. Não falam em jogar bola, botar ela no chão e envolver o adversário a dribles, chutes e gols. O passe em curva, a ginga, o drible, o toque envolvente, ficaram para trás. A dividida, o pontapé, a marcação tomaram o lugar. A ponto de um Neymar ser considerado um fora de série. Acreditem, crianças, apesar de craque, só impressiona aos mais velhos porque se destaca em meio à mediocridade. Vimos coisa tão boa quanto e não faz muito tempo.

Nas décadas de 1970/1980, o futebol brasileiro ainda vinha embalado pelo tricampeonato do México, na Copa de ‘70, apesar das derrotas que se seguiram. Os craques, craques mesmo, enchiam nossa imaginação. Os principais centros do futebol brasileiro – Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro – tinham pelo menos um grande time, cada. Havia também bons times em Pernambuco, na Bahia, no Paraná. A referência era o time tricampeão no México. Canelada era crime. Os dribles de Pelé, os chutes de Rivelino, os lançamentos do Gérson, a genialidade de Tostão, as arrancadas de Jairzinho, permaneciam na retina. As crianças não queriam imitar o perna de pau, nas peladas de fim de rua ou nos campinhos.

Lembro uma capa da Placar, de 31 de dezembro de 1981, antes da Copa da Espanha, que trazia as fotos de Sócrates, Zico, Falcão e Reinaldo, com o título “A Geração de Ouro”. O Brasil havia feito uma excursão à Europa e batido a Inglaterra por 1 a 0, feito inédito, já que a Inglaterra nunca havia perdido em Wembley para uma equipe sul-americana, a França por 3 a 1 e a Alemanha, a grande força europeia da época, por 2 a 1. Ganhou. Ganhou, nada. Ganhou jogando bola, maravilhando nós aqui e os gringos lá. Os caras levantaram nosso moral, depois das campanhas arrastadas de ’74 e ’78.

Em 1982 as coisas não terminaram bem. Ótima campanha na primeira fase, 2 a 1 na União Soviética, um sufoco, 4 a 1 na Escócia e 4 a 0 na Nova Zelândia. Na segunda fase, um triangular, 3 a 1 na Argentina, que também perdeu para a Itália, 2 a 1. Na última partida, o empate era do Brasil, mas perdemos por 3 a 2, em um dos grandes jogos das Copas. Sim, porque a Itália, que fez uma campanha medíocre na primeira fase, classificando-se no saldo de gols após três empates em um grupo com Polônia, Peru e Camarões, não tinha nada de boba. Depois ganharia da Polônia na semifinal por 2 a 0 e da Alemanha Ocidental na finalíssima por 3 a 1.

Pois bem, a derrota para a Itália é atribuída a falhas na zaga, ímpeto ofensivo do Brasil, nervosismo, acusações de desvio de foco por alguns jogadores, que corriam em direção a placas de publicidade para comemorar os gols. Para mim, nada disso interessa. Nunca entendi porque não fiquei tão abalado como outros após a derrota. Com o tempo fui compreendendo. Apesar da qualidade dos jogadores em cada grande centro, ou talvez por isso, havia na época um bairrismo exacerbado – e aqui não há inocentes – pelas imprensas regionais, que combatiam o excesso de cobertura e de elogios aos times cariocas, particularmente ao Flamengo, campeão mundial no Japão em ‘81, e o grande time do início dos anos ’80, tricampeão brasileiro (1980/1982/1983).

A Globo “nacionalizou” o Flamengo, como faz ainda hoje, embora as campanhas do clube não ajudem. A resposta regional era inevitável. No Rio Grande do Sul, os torcedores do Inter ficavam fulos com a supremacia do Flamengo e a idolatria pelo Zico, em detrimento do Falcão, principalmente, que a essas alturas já jogava pela Roma. Aquelas arengas de torcedores no papel de jornalistas deixavam o que interessava de lado – o prazer pelo futebol de qualidade – por uma disputa que a própria imprensa tratava de promover, deseducando a plateia. Nada mudou, por essa via.

Mas o futebol mudou. Vendo a Alemanha de hoje, ou a Espanha de até pouco tempo atrás, percebe-se uma inversão de eixo. Já jogamos como eles jogam, e eles evoluíram, por assim dizer, aliando à sabedoria tática, que sempre prezaram, a qualidade técnica que um dia foi o grande fator de desequilíbrio em nosso favor. Claro que explicações econômicas também contribuem para isso. Nossos principais jogadores começaram a sair cada vez mais cedo do Brasil, em troca do sonho europeu, e depois em troca do dinheiro de qualquer lugar, China, Emirados, Uzbequistão, onde seja.

Mas essa não é a única explicação. Até porque os salários pagos no Brasil permitiram contratar, manter ou repatriar muitos jogadores, e nem sempre em final de carreira. A questão é de conceito. Está adormecido em nós o prazer pela arte do passe imprevisível, do drible estonteante, da firula maliciosa, de uma forma parecida a da dificuldade de reconhecer a política como espaço criativo pra resolver nossas questões mais urgentes, ou a solidariedade e a honestidade como valores permanentes. Em outras palavras, perdemos a magia, e isso também se reflete no futebol. Apesar do sol, das belas paisagens, da diversidade do clima, da vegetação, do povo, da paixão pelo jogo, que persiste, o futebol vive uma lenta agonia. O Brasil tornou-se um país mais triste.
___________________________
(*) Amilcar Oliveira é jornalista

Nenhum comentário: