15 de janeiro de 2010

"Eu tenho pena de quem segue prá Bagé..."

Acidentes como este, registrado por volta de 1930,

...deixavam as linhas interrompidas por vários dias.

Como está explícito na música Maria Fumaça, de Kleiton e Kledir, sair de Pedro Osório com destino a Bagé, pelos trens da Rede Ferroviária Federal (1), poderia se tornar uma epopéia tendo em vista os grandes atrasos motivados pelos mais diversos contratempos que poderiam ocorrer durante o trajeto. Os trens também fizeram parte da história dos alunos do Estadual. Eram os trens que levavam a gurizada dos colégios para a Colônia de Férias do Estado, na praia do Cassino. Era de trem que os estudantes do Estadual, e de outras escolas de Bagé, iam a encontros estudantis, religiosos, esportivos e culturais pelo estado do Rio Grande do Sul. Muitas narinas foram impregnadas com a fuligem proveniente da queima do carvão de pedra que alimentava as fornalhas das Marias-Fumaça ou das locomotivas 1000. O carvão mineral, farto e a céu aberto nas minas de Candiota ou nas minas subterrâneas no distrito de Rio Negro (2), queimava sem parar movimentando as caldeiras das locomotivas. Os horários, ah! os horários... esses eram imprevisíveis. Na linha que ligava Cacequi a Rio Grande, tudo podia acontecer. Inclusive o trem chegar no horário marcado.

Estudantes e outros passageiros regulares utilizavam passes pré pagos

Muitos estudantes da campanha costumavam vir para Bagé no trem da segunda e voltar para casa no trem da sexta. Esses alunos usavam passes, chamados de Bilhetes de Assinatura, pois eram passageiros contínuos da linha. As composições dos trens eram, na maioria das vezes, mistas. Cargas e passageiros. Daí toda a demora na logística de carregar, descarregar, engatar, desengatar e procurar, com muito cuidado, nunca colocar dois trens na mesma linha senão era acidente na certa. Telegrafistas e controladores se revezavam na tarefa estressante de receber e liberar trens nas suas malhas de controle. Vários colegas do Estadual eram filhos de ferroviários. Eram, geralmente, bem aquinhoados, pois ser ferroviário significava trabalhar numa sólida empresa pública que pagava bons salários e oportunizava muitas vantagens sociais através do seu sindicato, o IAPFESP (3) .
As compras feitas na Cooperativa costumavam ser entregues em sacos que,
segundo observação desta nota, tinham dia certo para devolução
(vale a pena clicar sobre esta imagem para fazer a leitura completa e atenta)
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Na Cooperativa dos Ferroviários, sempre cheia de novidades, os sócios compravam com desconto e os que moravam ao longo da linha recebiam as mercadorias em casa que eram levadas, é claro, pelo trem. Eles possuíam acesso a bons médicos, hospitais, assistência social e freqüentavam os Clubes dos Ferroviários. Costumavam formar times de futebol, muitos deles batizados de Ferrocarril, o mesmo nome dos times desse gênero do Uruguai. Os ferroviários eram uma classe trabalhadora muito organizada e valorizada, desde os gerentes de estação até os tucos, como eram chamados os homens que consertavam os trilhos. Viajar de trem, ouvindo aquele tlaque-talaque constante, era participar de uma aventura inesquecível que envolvia situações como atravessar longos túneis escuros, contornar curvas perigosas, parar em estações no meio do nada e vislumbrar, da janelinha do vagão de passageiros, as paisagens únicas e deslumbrantes do nosso Pampa Gaúcho. Os atrasos... bem, os atrasos só preocupavam mesmo “quem seguia prá Bagé...”
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(1) A VFRGS, Viação Férrea do Rio Grande do Sul, criada em 1920, foi encampada pela RFFSA em 1959.
(2) Rio Negro mudou de nome em função das minas de hulha, e hoje é o município de Hulha Negra.
(3) Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários e Empregados do Serviço Público.
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Os documentos e fotografias que ilustram este post me foram presenteados pela sra Anabela Medeiros Pires, que nasceu em Bagé, na Charqueada Santo Antonio, onde seu pai, Sergio Medeiros, era Agente da Estação.
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15 comentários:

BLOG DA JAN disse...

Sensacional a matéria!! Fui uma vez à Colônia de Férias do Cassino..e foi uma festa a viagem, eu deveria ter uns 10 anos e adorei tudo... (já andava por aí minha sede de conhecer lugares , coisas e gentes...). Depois fui algumas vezes de trem , já maiorzinha, à Rivera onde tinha parentes. Eu enjoava muito de ônibus, a estrada irregular, o cheiro co combustível uffff...De trem era um prazer e uma aventura: lembro dos vendedores de Cacequi que ficavam na plataforma vendendo de tudo... e de um picolé verde que eu achei o máximo; também dos lanches no vagão-restaurante, da alta e para mim enooooorme ponte sobre o rio Santa Maria. rsrsrrsrs. Eu ainda hoje sou fervorosa adepta da volta dos trens...

Luiz Carlos Vaz disse...

Uma boa lembrar dos vendedores, Janice. Na época do Butiá, essas estaçõeszinhas do interior enchiam de guris vendendo butiás aos passageiros. Não é prá menos que até hoje ainda existem centenas de Butiazeiros ao largo da ferrovia. Era um festival de carocinhos sendo atirados pelas janelas...

manoel disse...

Manoel disse
Fiz algumas viagens nas férias do Estadual. Uma vez fui a Capital. Saída de Bagé para Cacequi, depois Santa Maria e finalmente Porto Alegre. Foi uma verdadeira aventura de dois dias. Outra vez para a Estação Experimental(Hulha Negra) e algumas vezes para Rio Grande (Cassino). O nosso jornalista Vaz, usa muito bem o Colégio Estadual como uma enorme referência e ponto de partida de nossos estudos, nossos passeios, nossas viagens, nossos sonhos, nossos colegas e nossas saudades. É isso aí Vaz. Parabéns.
Gostaria que os colegas do Estadual participassem mais, com comentários, fatos e fotos. Manoel Ianzer - São Paulo

Luiz Carlos Vaz disse...

Manoel, obrigado mais uma vez. Os colegas tem colaborado bastante. Muitos estão em férias e, creio, que aos poucos eles vão abrir seus baús de recordações e vão enviar convites de formaturas, recortes de jornal, fotografias de professores... tudo que nos remeta aqueles anos maravilhosos que passamos no Estadual.

Anônimo disse...

Documentos sensacionais ! Um registro da nossa história através da memória ferroviária. Lembro da última viagem de trem no dia 3 de outubro de 1955, eu já estudava visando o concurso de admissão ao ginásio no Estadual, no ano seguinte. Foi uma curta viagem, de ida e volta, daqui até a Hulha Negra, para nossos pais votarem nas eleições desse dia, que acabou elegendo o Juscelino. Saimos de manhã cedo e voltamos no final da tarde. A linha era Bagé-Rio Grande, que passava por Hulha Negra e Pelotas. Fizemos muitas vezes o trajeto Bagé-Pelotas. Bem lembrou a Acquamarina sobre a festa que eram essas viagens. Ah! que saudade do cheiro que tinham os trens, do cheiro que tinham as maçãs e do gosto especial que tinham as bananas que a nossa mãe comprava no "carro buffet", do gosto que tinha a água mineral, quente e borbulhante, que nosso pai trazia do mesmo lugar, da parada que o trem fazia em Cerro Chato, onde almoçávamos o "fiambre" que nossa mãe tinha preparado. Que saudade das locomotivas a vapor, as "Maria Fumaças" !

Hamilton Caio

Luiz Carlos Vaz disse...

É, pelo que vejo vou ter que postar logo o "Eu tenho pena de...II" pois o assunto agradou em cheio. Como tenho outros documentos e fotos inéditas acho que sai logo. Obrigado pessoal.

Luiz Carlos Vaz disse...

A propósito: já ampliaram a "nota da Cooperativa" para ler os detalhes?

Anônimo disse...

A nota do armazém é uma raridade, mostra um retrato da época. Estava no auge da 2a guerra mundial (setembro de 1943), período de escassez de muitos produtos. Parece ser o "rancho" previsto para um mês de uma família média. A principal compra foi o arroz e o feijão, mais o açúcar e o indispensável café, a base da alimentação. Em tempos de guerra, o açúcar refinado era luxo, foi riscada essa palavra e o "freguês" levou açúcar comum (marca "uzina" ? - foi anotado "uz"). Pão de padaria era supérfluo. Incluia farinha para fazer o pão em casa. A massa, pouca, era só para os "talharins" de fins de semana. A iluminação deveria ser a querozene (dizia-se "gás"), porque dois pacotes de velas davam só para complementar o uso dos lampeões. A graxa foi riscada. A produçao industrial desta era para o esforço de guerra. Foi banha no lugar, que era produto artesanal. A observação "abater a manteiga", no alto da nota, mas com o devido "visto" do lado, significa que o associado levou o produto "em mãos" porque era mais delicado. E o papel (talão, como diz abaixo) e a tinta da impressão eram de qualidade inferior, próprio desse tempo.

Hamilton Caio

Luiz Carlos Vaz disse...

Boa interpretação Hamilton. A Juliana, nutricionista que está fazendo doutorado na UFRJ, está analisando a nota e possivelmente faça também algum comentário específico.

Manoel Ianzer disse...

"Quando viajava para Bagé de TREM, via os pessegueiros em flor, via VAN GOGH"
Danúbio Gonçalves

Luiz Carlos Vaz disse...

É verdade Manoel, esse nosso "Danúbio Van Goghçalves" não se deixa por menos.

Unknown disse...

De Santa Maria a Bagé eram 9 horas de viagem, com escala em Cacequì.
O que acharam da escala?
Era a velha "BALDEAÇÃO", descíamos do Fronteira e passávamos para o Rio Grande. Isso era uma festa, uma farra. Recordem-se da gurizada solta, caminhando nos vagões, ninguém viajava sentado e nem por isso cansávamos.
Alguns anos depois, por ironia do destino, fui estabelecer-me exatamente em Cacequi e passei inúmeras vezes pelo local da baldeação, que hoje também não existe mais.

Luiz Carlos Vaz disse...

Baldeação, um termo que precisa ficar guardado na memória. Eu, bem pequeno ainda, quando ouvia meu pai dizer que "fez baldeação" aqui ou ali, ficava imaginando que as cargas e as coisas, de um trem para o outro, haviam sido levadas em baldes...hahaha

Anônimo disse...

Prezados.
Sou nascido no Rio de Janeiro.
Meus pais são de Bagé e morei em Sta. Maria, por volta de 1957 a 1962.
Fiz muitas vezes o trajeto Sta. Maria - Bagé.
Acrescento aos relatos anteriores que sempre lembro de vendedores de chicotinhos (acho que vcs. chamam de rebenques) coloridos, acredito que revestidos artesanalmente de linhas. Isso era em Caçapava.
Meu avô trabalhava numa padaria em Bagé, e nos acompanhava, de madrugada(sempre fazendo frio), até a estação e nos dava pão fresco para a viagem.
Dentro do trem era só diversão. Levávamos café em garrafa térmica, empadas e pedaços de frango.
Qdo. viemos em definitivo para o Rio saimos da estação ferroviária(hoje infelizmente abandonada) de Sta. Maria, até São Paulo. Lá embarcamos em outro trem até Juiz de Fora, nosso destino.
Acho desnecessário dizer que meu pai era militar, né?
Bons tempos
M. Cremona

Luiz Carlos Vaz disse...

Alô M. Cremona, obrigado pelo relato das tuas memórias. Elas, somadas às nossas, resgatam um período muito especial dos transportes no Brasil. Imaginem só: de Santa Maria até Juiz de Fora, de trem... Posso até dizer, parafraseando Kleiton & Kledir, "eu tenho pena de quem segue até Juiz de Fora", hehehe