13 de abril de 2010

Olha o passarinho! - II, A caixa de sapatos da vovó

Conforme prometi, em resposta a um comentário da Léli na postagem do dia 8 de março, Olha o passarinho!, estou publicando um artigo que escrevi ainda quando era aluno do Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural, do ICH/UFPel, e que foi publicado em março de 2009 no Jornal Amanhã, de Jaguarão. Ele faz parte de uma série que denominei de "A década sem memória", em virtude do risco que corremos de ficar sem registros de imagens para o futuro deste tempo que tem o predomínio da fotografia digital. As fotos do nosso tempo do Estadual que têm ilustrado as matérias do Blog, tenho certeza que permanecerão nas "caixas das vovós" por muitos anos ainda. As fotos digitais que tomamos hoje... não sei não se ainda as teremos no ano que vem!
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 Em 12 de dezembro de 1942, o soldado ainda noivo,
pensa na convocação da FEB e na noiva que deixaria em Hulha Negra...
(foto da "caixa de sapatos" da Vovó Loracy)
A Caixa de sapatos da vovó
Luiz Carlos Vaz (*)
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"Nunca se fotografou tanto. Nunca tantos tiveram tantas máquinas. Nunca foi tão fácil e barato fotografar. Nunca corremos um risco tão grande de perder a memória. Dizer tudo isso parece uma contradição. Mas não é. A mesma modernidade que nos trouxe a popularização da fotografia, como queriam seus criadores, um século atrás, também colocou uma dose de vulgarização no ato de fotografar. Chega a ser irritante, quando em qualquer lugar público, num momento solene, saltam dezenas de máquinas digitais, telefones celulares e outros equipamentos, ditos também “fotográficos” e, numa sequência de zunidos e cliques de toda a ordem, o silêncio obsequioso da hora é quebrado pela movimentação de uma parafernália indescritível de equipamentos que servem “para fixar a imagem”. Correto, fixar a imagem. Mas por quanto tempo? Em que tipo de suporte? Nesse momento é que nossa memória começa a correr o risco de desaparecer. Os suportes digitais preservam as imagens enquanto alguma coisa mais interessante e atual não exigir a limpeza do HD ou do chip onde estava guardada uma imagem, dita importante, feita há algum tempo atrás. Não se tem mais o costume de copiar, ou modernamente, imprimir as fotografias. As velhas caixas de sapatos, com os retratos do tempo da vovó, é que continuarão a ser por muito tempo a referência de nossas lembranças fotográficas. As fotografias coloridas dos anos 70 já perderam a cor e, quem sabe, boa parte das informações. Quando, nos anos 80/90, o processo ganhou legitimidade e definição fotoquímica “saiu de moda”. As fotos digitais tomaram conta do mercado – e o mercado somos nós – e abandonamos as máquinas fotográficas convencionais e os processos químicos de revelação em papel. Dependemos agora de um complicado código de “zeros” e “uns” que guardarão (?) as imagens de hoje desde que respeitadas as condições apropriadas para conservação dessa nova mídia. A verdade é que ainda temos em casa “slides kodak” mas não temos mais projetor e lâmpada. Temos fitas VHS e não temos mais um videocassete com cabeçote sem mofo. Hoje temos os HDs, as câmeras digitais, os celulares com seus chips... e onde estão nossas fotografias? Somente nas memórias deles ou já copiamos em papel? Mas, vejamos bem, quantas centenas de fotografias já tomamos com nossas digitais? Vamos imprimir todas elas? Com certeza não! A caixa de sapatos da vovó, que guarda retratos quase centenários, é que continua sendo o único lugar seguro onde, com certeza, nossa memória visual ficará, ainda por muitos anos, preservada. Cuide da sua caixa! Vovó, e nossa memória, vão ficar agradecidas."
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Março de 2009.
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(*) Jornalista, fotógrafo e mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural do ICH/UFPel
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Artigo publicado no jornal Amanhã, de Jaguarão, dia 18 de março de 2009, na coluna Patrimônio cultural, cidade e memória, de Alan Dutra de Melo.
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12 comentários:

Maribel disse...

Penso que devemos confiar mais nas caixas de sapatos das vovós! Se o mundo realmente acabar em 2012, cessará a energia na terra. Não terão mais utilidade os computadores. Já as caixas de sapatos poderão, de repente, sobreviver. Me corrijam se eu estiver enganada..E tomara que eu esteja!!

Gerson Mendes Corrêa disse...

Realmente corremos um sério risco de ficarmos sem registros fotográficos, do jeito que a coisa está indo. Na verdade o que se nota é que nada mais tem um valor prolongado, hoje vive-se o momento, o amanhã é o amanhã e amanhã nós o veremos. Ainda bem que temos as vovós que exigem uma foto no papel para elas poderem continuar a preservar a estória de cada indivíduo e juntando tudo a história de um povo.

Luiz Carlos Vaz disse...

Maribel, mesmo que o mundo e a energia não acabem em 2012 (ufa!), jovens arqueólogos, num futuro não muito distante, só poderão observar as nossas imagens que ficarem no papel. Nossa tecnologia tem mudado de versões muito rapidamente e o que é "antigo" vai sendo deixado de lado. O VHS virou DVD, que já virou Blue-Ray Disc (BD) e este, vai virar outra coisa, logo ali... Quem não tem em casa boa parte das suas memórias (textos, fotos...)naqueles diquetes quadradinhos de plástico (de dois tamanhos)que se enfiavam numa portinha do computador? Hoje nem vem mais PC com aquele tipo de porta, é só CD e USB. Vamos voltar para o "quarto escuro" de Daguerre? Ainda dá tempo!

Luiz Carlos Vaz disse...

Gérson, o pessoal está confundindo "consumo de bens e servços" com o consumo de suas próprias memórias e histórias de vida. Como escrevi no artigo "Nunca se bateu tanta fotografia..." mas, certas mesmo, estão as vovós, como dizes, que sempre exigem uma cópia em papel para colocar nas suas "caixas de recordações" da família e do presente.

Hamilton Caio disse...

Vaz, num exercício de imaginação, eu vejo esses arqueólogos também quebrando a cabeça, tentando decodificar empoeirados díscos rígidos de computador encontrados em velhos depósitos de sucata. Dados descontínuos, registros corrompidos, e eles se esforçando para juntar essas informações e encontrar sentido lógico.

Hamilton Caio disse...

A primeira reação à vista da fotografia é da emoção que nos transmite a dedicatória do jovem soldado para sua noiva. Depois imaginamos que essa geração, certamente, ficou marcada pela angústia e a incerteza no futuro, devido a 2a guerra mundial. Eu lembro, muito pequeno, das conversas e comentários que sempre envolviam a palavra "guerra". Logo vem a reflexão sobre os horrores das guerras, atingindo primeiramente esses jovens soldados, ceifando vidas promissoras que entravam na fase adulta cheias de esperança.

Luiz Carlos Vaz disse...

Hamilton, há um filme alemão do diretor Sebastian Niemann, de 2002, que se chama "O vídeo de Jesus" (Das Jesus video)... trata exatamente desse tema. Numa escavação em Israel, nos anos 80, arqueólogos encontram esqueleto de 2.000 anos e, junto a êle, envolta em um plástico, uma câmera Sony, que não usava fita, e que só seria fabricada nos anos 90 por ai...Vale a pena ver.

Luiz Carlos Vaz disse...

E quanto a fotografia, Hamilton, a leitura antropológica, social e histórica que se pode fazer dela é enorme. Desde a técnica fotográfica utilizada na época, os detalhes do uniforme militar, os elementos do cenário do estúdio, a aliança no dedo da mão direita... e o olhar. O olhar merece um estudo à parte. Deve ter sido um momento muito importante na vida desse soldado. Um porvir inimaginável em plena 2a guerra...

Hamilton Caio disse...

Um fato pouco usual multiplicou o valor da fotografia. Foi a ansiedade do ofertante da lembrança em fazer a dedicatória na própria face do retrato, ao invés de fazê-la no verso, como seria habitual. Deu um realismo e uma autenticidade fora do comum, fazendo aumentar a carga emocional, vistos com o nosso olhar de quase setenta anos depois. A tinta preta da caneta, que virou sépia mas resistiu ao tempo, cumpriu o seu papel ...
Sem dúvida, essa fotografia está transbordando para nós o ambiente de uma época. Parece que vemos apreensão e incerteza disfarçadas nos olhos do jovem soldado, aliada à ansiedade de deixar aquela lembrança para sua noiva. Propositadamente ele deixou a aliança do noivado bem visível na mão direita, a confirmação de seu compromisso com a moça. Seria também a preocupação em legar uma imagem para ela acariciar durante a sua ausência, quando estivesse no front da guerra que se avizinhava ? Nos parece que é tudo isso, pois também ficamos sabendo que ele era voluntário, havia se apresentado até antes da idade mínima, não havia esperado a convocação obrigatória.
Vemos também um uniforme impecavelmente apresentado, com a túnica devidamente engomada, como era a tradição militar, e o culote, a calça usada na Cavalaria, complementada pelas botas, cujo brilho refletindo as luzes do estúdio Barnils, mostra que estavam bem polidas. O chamado cinturão, de couro, usado por cima da túnica, mostra a fivela dourada, impecável, o que também é evidenciado pela luz do estúdio. Complementando o conjunto da foto, o sofá de estilo tradicional, igual ao que eu encontrava na casa da minha avó, um móvel que era um item quase obrigatório na composição dos cenários usados por esses verdadeiros artistas fotógrafos do século passado.

Manoel Ianzer disse...

O Hamilton soube descrever a foto do militar de uma maneira que busca o sentido das palavras, para confirmar fatos com um realismo que nos deixa seduzidos pela leitura. Parece um historiador ou escritor, me lembrou o Érico Veríssimo com seus livros que marcaram minha adolescência como: Caminhos cruzados, Um lugar ao sol e o Tempo e o Vento. Foi uma época de grande sucesso nacional.

Hamilton Caio disse...

Ianzer, como costuma dizer o Vaz, menos, menos, rsrsrsrs ! Agradeço a tua consideração. A idéia de todos nós é essa, resgatar memória e trocar informações que mantemos nos baús. Um grande abraço.

Anônimo disse...

O militar em questão é um Cabo, visto a insignia no uniforme.