6 de abril de 2012

As Marcelas do Cerro


Um costume que me lembro muito bem era o de colher Marcela no Cerro de Bagé na Sexta-feira Santa. Cedinho, grupos familiares inteiros rumavam em direção ao Cerro para colher a Marcela ainda antes do sol nascer. Claro que essa coleta acabava se estendendo por todo o dia. Mas, ouvir pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro a dramatização da paixão de Cristo era também uma "tradição" da Sexta-feira Santa. E era o que se fazia lá em casa. Talvez numa inconfessável esperança de que em um ano o povo pudesse escolher Barrabás para crucificar, só para variar um pouco, minhã mãe ouvia, em meio a chiados e descargas, Pôncio Pilatos lavar as mãos todos os anos. Depois da radiofonização a emissora passaria a tocar músicas "de câmara" e clássicos durante todo o resto do dia. As rádios Difusora e Cultura só entrariam no ar após as seis horas da tarde, e lá muito de mansinho, tocando algumas valsas, orquestras... o medo do tal de inferno era muito grande naquela época. A Sexta-feira Santa era o dia em que Deus estava morto, portanto qualquer deslize da gurizada... 
.
O resto do dia era silêncio e nada de pensar em sacanagem... Minha família nunca foi colher ervas no dia da Paixão, mas tínhamos da nossa casa uma visão privilegiada e podíamos observar, ainda que de longe, as pessoas, como gafanhotos, pelarem o Cerro de Bagé com suas Marcelas bentas da Sexta feira Santa. Hoje não é mais preciso ir ao Cerro de Bagé, o pessoal colhe Marcela, turbinada com monóxido de carbono, à beira das estradas e se intoxica barbaramente. Aliás, eu nem sei se as famílias ainda fazem romaria ao Cerro e se ainda existe Marcela por lá. Cheiro de Marcela e Sexta-feira Santa são coisas que andam junto na memória deste guri do Estadual.
.
Texto publicado aqui no Blog em 31 de Março de 2010
.

2 comentários:

Vera Luiza SVaz - maudepoesia.blogspot.com disse...

Agradáveis memórias...
Vaz, fico aqui a pensar sobre essa religiosidade que se aprendeu na infância. Falei religiosidade, não religião...
Acredito-a muito saudável, Deu-nos o entendimento de que não somos apenas o que enxergamos...
A compreensão do algo mais existente em nossa constituição faz uma enorme diferença com o passar dos anos...
Bom feriado!
Abraço!

Luiz Carlos Vaz disse...

E aprendemos principalmente, Vera, a no creer em Brujas... (pero que las hay, las hay...)