4 de agosto de 2021

Voo Livre: Jaguarão e o Resto do Mundo


Deogar Soares
 (*) 
Crônica para o programa Voo Livre, Rádio Alfa, 1984

   Peguei o livro e fui pra casa, certo de que estava levando comigo meu Jaguarão e o Resto do Mundo. No meio do caminho, mais um obstáculo, uma inebriante ira da memória. Era a lembrança de Irajá e seu livro até hoje inédito, certamente prometido, mas inexplicavelmente não-sabido.

    Da ausência de Mirim, ficou-me um gosto amargo de ressaca naquele balcão de bar, onde perdi o exemplar do Schlee. Não sei até hoje, quem me roubou “Jaguarão” nem o que fizeram com o “Resto do Mundo.”

    Uma quarta-feira é um dia qualquer.

    Deixa de ser quando a rotina das impressões dá lugar a sentimentos inesperados. Foi numa quarta-feira recente, que ouvi, de um estudante de Comunicação Social, a reprodução de um comentário de Aldyr Schlee, a meu respeito:

    -Ele te preza muito como pessoa.

    Ao fazer essa revelação, Eduardo não sabia estar ligando dois importantes filamentos vitais da minha vida. De um lado, o duto por onde se transporta um desesperado esforço, para que me percebam como ser humano cansado dos próprios erros e requerendo, através destes e daqueles, se digne o mundo conceder- me uma relativa paz de consciência.

    Que outros se manifestassem assim, eu teria razões para desconfiar da lisonja. De Schlee, não.

    O antigo companheiro dos tempos de Opinião Pública e Diário Popular, é dotado de incomparável capacidade para descobrir e interpretar a vida, tanto dentro como fora do seu universo existencial.

    Concluo que tenha farejado a minha luta e, talvez tenha se constituído num privilegiado observador das minhas penitências públicas. Tudo sem concessões, como lhe ordenam os princípios.

    De outra parte, o estudante Eduardo religou a linha que me leva a um antigo questionamento. Que eu não tenha lido “Jaguarão e o Resto do Mundo” até que é compreensível. Ninguém está livre de beber num bar a saudade de um cronista morto, de obra inédita, e a ansiedade de sorver em cada página o talento do amigo escritor.

    O que é de bêbado não tem dono, e nem livro escapa dessa máxima. Inexplicável, mesmo, foi a sucessão de vezes em que fiquei diante da vitrina da Mundial, observando (ou observado?) por “Uma Terra Só”.

    Se por vias indiretas Schlee me manifesta tão fraterno sentimento, tanto melhor que, por igual caminho lhe preste explicações. Mesmo residindo na mesma cidade, temos passado meses sem nos vermos.

    Sei, no entanto, que não mudou, que continua mais teimoso que nunca na honrada fidelidade aos seus princípios. E já não basta isso para justificar a vida?

    Meus olhos são profanos, tanto que possam perturbar as páginas de “Uma Terra Só”. Até hoje eu não tinha imaginado isso.

    Entrevista o Schlee! Procura o Schlee!

    Pergunta ao Schlee! E, assim, frequentemente tenho me socorrido nele, a fim de atender a tantos que me procuram em busca de soluções para questões nas quais ele é especialista.

    Tenho certeza, no entanto, que se lhe contasse que um simples vidro, na vitrina da livraria virou um muro dos meus delírios e me separa de sua obra, o mínimo que ele faria era o presente de um exemplar, com exemplar reprimenda, tão a seu gosto, grávida de neurastênicas reprimendas e mordazes comentários.

    Sei de um cronista, que muito deve à caridade alheia e é tão velhaco que abusa da amizade de um escritor, pedindo-lhes livros de graça.

    Mas afinal, pra que servem os amigos?

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Deogar Soares, Jornalista, Radialista, escrevia e apresentava na Rádio Alfa a crônica diária  Voo Livre. Faleceu em 2003.
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No dia do sepultamento do nosso escritor Aldyr Garcia Schlee conversei com uma repórter do Diário Popular, a pedido do Andrey, filho dele, e entre outras coisas contei essa história. O Deogar, lá nos anos 70... foi visitar o Schlee e levou emprestado os originais datilografados do livro do Schlee... entrou num bar e perdeu!!! Ela, e todos que ouviram na volta, ficaram, tenho certeza, pensando que baita mentiroso eu era... aproveitando de duas pessoas que já não estão aqui, e inventando uma história fantasiosa. Lembrei na hora do filme The Man Who Shot Liberty Valance - O Homem que Matou o Facínora, fita que havíamos assistido no ciclo Os filmes de Aldyr Schlee, no IJSLN, e que sempre mereceu por parte dele uma ótima avaliação. Mas, não era hora para pensar no que iriam pensar dessa "lenda".

Pois na segunda-feira seguinte ao fato, o Zé Mosquito - José Carlos Soares (irmão do Felix e do Deogar), levou para o Clayton, no programa 13 horas, essa crônica que ele procurou e achou nas coisas guardadas do "Velho" durante o fim de semana! Ele sabia que havia uma crônica falando no Schlee... e era justo essa. O Deogar havia escrito para sua radio-crônica diária - Voo Livre, na também já falecida Rádio Alfa...

Já eu continuo com a minha máxima: Eu minto muito, mas... sempre mostro as provas!
Luiz Carlos Vaz, Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog
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O livro de crônicas do Deogar foi lançado depois, em 2012, no Café:

http://ecult.com.br/eventos/voo-livre-de-deogar-soares-sera-lancado-hoje25-no-cafe-aquarios



Um comentário:

Flávia schlee disse...

Se desfalecer fosse reviver na memória de cor, essa terra estaria encolhida em um só grande coração e com Aldyr bateria em todos os ritmos ❤