23 de junho de 2011

Fogueiras de São João


Hoje fazemos fogueira só para aquecer a casa
.
"Luiz Carlos andava insistente atrás da mãe desde cedo, naquela manhã de 23 de junho do início da década de 60. Já juntara bastante carrapicho seco nos campinhos de perto da casa, mas necessitava da assessoria competente em armação de fogueiras de Loracy.
De longa data, vinha esse conhecimento. Na família de Loracy, bem como na de Athanagildo, seu marido, São João era comemorado com fogueira feita na véspera do dia 24.
Os tempos mudavam, sentia-se... Porém, ainda naquele ano, haveria a fogueira e “tudo o mais” - procedimentos fundamentados em crenças que, não se sabe desde quando, acompanhavam as duas famílias.
Crescemos, meus irmãos e eu, vendo nosso pai e nossa mãe acordarem antes do sol, na manhã do dia 24 de junho, para recolherem os restos da fogueira da véspera, os tições, que eram guardados, junto com as garrafas – que não eram pet – cheias de água, agora “benta” por obra de São João.
Também eram recolhidas as ervas - alecrim, marcela, folhas de eucalipto e outras – na noite anterior, colocadas ao lado dos restos da fogueira. Tudo era guardado ao abrigo do sol, para ser usado em momentos de necessidade.
Lembro que era procedimento corriqueiro, quando havia tormenta, a mãe chegar à porta da casa com uma garrafa de “água benta” e despejar goles em cruz, três vezes... Se a tempestade prosseguisse, um foguinho era improvisado num fogareiro com alguns tições da fogueira. Adicionadas as ervas, circulava pelo ambiente uma fumacinha cheirosa.
A serenidade tomava conta de nossos jovens corações... Sentíamo-nos aconchegados e protegidos...
A insistência de Luiz Carlos, naquela manhã, talvez, fizesse uma antevisão de um procedimento pleno de fundamento cultural que logo passaria a fazer parte apenas das memórias de nossa família."
.
Enviado pela colega
Vera Luiza
.

8 comentários:

Gerson Mendes Correa disse...

Interessante a estória, desse esquema de água e das plantas colhidas eu não conhecia, até porque não fui criado em ambiente católico, mas é no mínimo interessante, obrigado à Vera por ter me ajudado a aumentar minha cultura neste ponto.

Hamilton Caio Vaz disse...

A fogueira de São João era a mais concorrida, eu observei isso até o final dos anos 50. O número delas e o tamanho sempre eram mais destacados no dia 23 de junho. A segunda mais comemorada era a de Santo Antônio no dia 12. Quando chegava o dia 28, a de São Pedro, parecia que a turma já estava farta das fogueiras, e aconteciam em menor número. Nós moramos em meados dos anos 50 na rua que hoje tem o nome de Prof. Otávio Hipólito, esquina com a Venâncio Aires, era o local onde eu mais observei as fogueiras, tinha uma visão ampla da "subida" em direção ao antigo Povo Novo, toda área ficava pontilhada de fogueiras, de vários tamanhos e aspectos, e também toda a nossa rua. Além das fogueiras, naturalmente, havia também os fogos de artifício, que completavam o espetáculo. Um material muito usado nas fogueiras dessa região, além do "carrapicho" que a Vera falou, era a "chirca", ambas grande invasoras dos campos de pastoreio.
Das fogueiras vêm, também, as lembranças das histórias que a D. Loracy contava de quando sua família morou próxima a capela de São João, ali no Povo Novo, que existe até hoje, preservada, e foi mandado construir por uma figura muito popular e conhecida da época, o João Turco. Ele era devoto de São João e promovia uma grande festa nesse dia, com uma grande fogueira e outros festejos tipo quermesses. A fogueira era enorme, preparada com uma série de "barricas" empilhadas e que eram cheias de lenhas formando o núcleo que era depois rodeado com outros materiais combustíveis, o que resultava em um grande fogaréu quando começava a arder. Uma das "atrações" da festa era um mastro que era preparado para a gurizada escalar e que tinha um prêmio em dinheiro colocado no topo dele, para quem conseguisse chegar ao topo do poste, mas o tal mastro era engraxado previamente com sebo, dificultando a subida. D. Loracy ainda me falou hoje que o João Turco era proprietário de dezenas de casas nas proximidades e que eram alugadas.

Hamilton Caio Vaz disse...

A barrica era um tipo de caixa de madeira na forma de um barril tradicional, como os usados para vinho e destilados. As diferenças eram a madeira de qualidade inferior, paredes mais finas, não eram totalmente vedadas como o barril que armazena líquido, mas eram também circundadas por cintas metálicas, semelhante aos "arcos de barris". A barrica era uma imitação de barril. D. Loracy me lembrou que elas serviam para transportar erva mate a granel e rapadura de palha, entre outros usos, lembro delas no armazém (venda) do meu pai na Hulha Negra. Quando desocupadas serviam para guardar muita coisa ou também como combustível para o fogo. Isso também me fez lembrar que até o início dos anos 60, pelo menos, a indústria ainda usava caixas e caixotes de madeira para transportar mercadorias para as lojas e armazéns e que essas caixas eram reforçadas por fora com as mesmas cintas metálicas das barricas. Cheguei a conhecer uma máquina portátil que dava o aperto final e prendia as pontas das cintas, fazendo o arremate em torno das enormes caixas.
Daí vem a dedução lógica: o transporte de mercadorias ficou mais leve e econômico depois que as caixas de madeira com cintas metálicas foram substituídas por caixas de papelão e isopor, além de serem mais fáceis de desembarcar e manusear na chegada às lojas. Parece que só a natureza não ganhou, continuaram usando a mesma madeira para fazer o papelão e ainda aumentaram os processos industriais com o tratamento da madeira e mais eliminação de resíduos.
As tábuas dessas caixas, certamente, deviam fazer a festa do pessoal que juntava embalagem na época, mas provavelmente de um modo diferente: iam direto para a construção de abrigos, pequenos galpões, galinheiros, entre outros usos, e também materiais para “iniciar” o fogo.

Ah, a expressão "barril de pólvora" está incorreta, porque antigamente o que se usavam eram barricas para transportar pólvora!

Luiz Carlos Vaz disse...

Dando razão para o Hamilton, hoje o Google brinda a todos com uma abertura junina em homenagem ao santo do dia. Realmente, é o João, o santo mais popular.

J.J. Oliveira Gonçalves disse...

Pois, minha gente boa...
Viva São João, então... rs...
A bela e familiar narrativa da amiga Vera me conduziu a épocas que, envelhecidas pelas andanças na Linha do Tempo, me fez suspirar de Saudade e eu mesmo me vi, indiozito no más, de calça curta, (será que eu sentia frio? ...rs...), envolvido e encantado com as movimentações "especiais" porque, à noite, teríamos uma grande, bela e bem alimentada "Fogueira de São João Batista"! (Minha mãe, especialmente, era devota ardorosa dos dois "Joões" - Evangelista e Batista) e, desde que se lembra minha memória, até o ano de 57, uma fogueira sempre ardeu, com sua Magia e sua Luz, à frente de nossa casa, na Rua dos Sargentos. Era muita alegria. Havia as tais bombinhas de parede, os "rojões", os busca-pés... Estes pareciam mísseis que, acesos, saiam chiando e iluminando a noite... Ah, a gente ria muito quando, mal manuseados, "enlouqueciam" e saiam correndo atrás de alguém... rs... Mas, para mim, especialmente, as coloridas "estrelinhas" eram um espetáculo à parte: silenciosas, etéreas e brilhantes... Parecia Magia Pura feita por alguma Varinha de Condão... Ah, delicadamente poéticas... Quem sabe, nesse meu Encantamento de menino já sonhador, meus olhos curiosos viam nessas estrelinhas um poeminha mudo, mágico, concreto... Meus pais - José e Nena - tinham, também, venda/armazém e, além de venderem, igualmente presenteavam a gurizada mais pobre da rua e arredores, com bombinhas e foguetes. (Eta tempo bom e fraterno aquele!!) O que o Hamílton nos conta - de forma entusiasmada e detalhada - sobre as fogueiras e sobre o armazém/venda, propriedade de seus pais, me aviva a memória como se o Hamílton habilmente abrisse escaninhos do Passado e me dissesse: "João, ainda lembras disso?". Poxa: esses relatos todos me emocionam tanto que fico com os olhos molhados... Verdade! Afinal, é assim que sou. Não tenho vergonha de ser assim: um homem com seus Sentimentos à flor da pele... Finalizando, a "água benta", as crendices - populares e de família, que nos faziam tanto bem e nos transmitiam Fé e segurança! Lembro, ainda, das "magias" e das "adivinhações" na Noite de São João... Por exemplo: as gurias pegavam uma bacia com água e uma vela, buscando ver, ali, refletido o "rosto" do futuro namorado... (Ah: será que algum de vocês "pulou" a fogueira? ...rs...) Enfim, falar de tudo isso e do que, aqui, não foi falado sobre o tema, é lindo e emocionante demais. Pessoalmente, também me causa Dor - embora com ela eu conviva faz muitíssimo tempo... Mas explico: por ironia, ou por "Ato Sagrado", Nena - minha mãe - se foi deste Plano Terreno, às 23h30min da noite de 23 de junho... (Nesse horário e nessa noite, por muitos e muitos anos, graças a ela, para alegria de muita gente, ardiam, ainda, as brasas de uma bela e grande fogueira na frente de nossa casa, para homenagear e louvar o Santo. Quem sabe, pelos Desígnios de Deus - que homem algum entenderá! - São João veio levá-la para premiar sua Devoção por ele e sua Fé que, nele, sempre teve. Tanto que, quando nasci, me chamou de João...
Nota: Viemos para Porto Alegre em dezembro/65 e, ainda uma vez, (ano 76), erguemos uma bela fogueira para São João, inclusive, com carrapicho - na frente de nossa casa.
Abração reminiscente para todos!
JJ!

Vera Luiza disse...

Vaz, olha que lindo ver um texto "desatar" os laços da memória do pessoal!!Saudade, lembranças, algumas dores,informações... Tudo recheado de detalhes para enfeitar, como "bandeirinhas", as páginas do blog! Abraço a todos!

Hamilton Caio Vaz disse...

Gerson, a gurizada daquela época não associava a fogueira com as religiões, todos participavam da festa. E como o Vaz já falou no post anterior, a tradição das fogueiras já existia desde tempos antigos, foi adotada como festa dos santos em épocas mais modernas. Era uma festa pagã. No teu tempo de guri, a tradição já tinha se perdido.

Hamilton Caio Vaz disse...

A chirca era muito prática para fazer uma fogueira. Era cortada com raiz e depois de seca estava pronta para o uso. Essa planta, na forma de uma grande vassoura, com mais de um metro de comprimento, era arrumada em camadas sucessivas, cada vez com um diâmetro menor, fazendo uma pirâmide, tendo um mastro de galho seco de árvore no centro, servindo de esteio para essa “arquitetura”. Após, era só esperar o anoitecer e atiçar o fogo. As raízes grossas da planta ajudam a prolongar o tempo de duração da fogueira.