25 de novembro de 2022

“Não quero para meu genro, mas quero jogando no meu time”

 

Fernando Freitas, Arquivo Pelotas 13 horas

“Não quero para meu genro, mas quero jogando no meu time” (*)

Luiz Carlos Vaz (**)

Luís Fernando Lessa Freitas era um excelente frasista. Mas não um frasista qualquer. Era um frasista bem humorado. Não quero com isso, claro, reduzir o Freitas a essa máxima. E para tanto conto com a inteligência de vocês. Não vou nem citar que ele era Jornalista formado pela UCPel, que dedicou sua vida à política e a cultura; que foi quem, em duas oportunidades, incentivou a criação - primeiro nos anos 60, e a recriação da nossa Feira do Livro, desta vez em 1977, e que dedicou toda a sua vida à outras atividades culturais da cidade onde nasceu e viveu... Não estou escrevendo a biografia do “velho Freitas”. Estou lembrando suas tiradas, quando, com o cachimbo ou um charuto no canto da boca, soltava algo assim: “Meu velho, ainda vão inventar uma vacina contra a AIDS, mas contra a burrice, não!”

Filho de Bento Freitas, era, claro, um Xavante de todos os costados, e dizia: Só torço por três times, e todos com começam com a letra b: Brasil, Botafogo e Barcelona. E, sobre futebol, possuía um currículo invejável. Tinha, por exemplo, assistido o “dos uno” no Maracanã...

De quatro em quatro anos, como a maioria dos brasileiros, escalava seus jogadores para a Seleção! E, claro, não deixava de fora nenhuma vedete, nenhum bobalhão, ninguém que, fazendo gols, garantisse mais uma conquista para o Brasil. Então fico imaginando o velho Freitas escalando para esta Copa do Qatar jogadores como o analfabeto político e sonegador de impostos - aqui e lá fora, Neymar, e repetindo uma de suas frases preferidas sobre vááários jogadores durante anos a fio: “Não quero para meu genro, mas quero jogando no meu time”.

Bom jogo a todos. Vou torcer pela nossa Seleção, pelo Tite, pelo Brasil! E vou vestir a “Camiseta Canarinho do Schlee”. Phoda-se o Neymar e suas peripécias financeiras, musicais, políticas e sexuais. Eu quero saber é do Richarlison e da conquista de mais um Caneco!

 

Meu livro "A Taça do Mundo é Nossa", sobre uma "Camiseta Canarinho do Schlee"


Ah! E em respeito ao “direito de autoterminação dos povos”, durante o jogo vou beber só chá!

Dá-lhe Brasil sil sil sil

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(*) Frase de Luís Fernando Lessa Freitas, que nos deixou aos 74 anos, em 2001. 
(**) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo, Escritor e Editor deste Blog

14 de novembro de 2022

Sábado

 

Montagem com fotos publicadas em vários perfis das redes sociais


Jorge Santos (*)

    Noite de sábado, não dá prá ficar em casa. Olho a rua pela janela e assisto a chuva que rola mansamente pelo telhado. A mãe já está dormindo. Nos pés, calcei uns tênis de lona, não sei se saio, não sei se fico. Mas a chuva é fina, acho que vai dar prá encarar. Passei no Kanto Kente, ontem, comprei uma calça Gledson de brim delavê e uma camisa Levi´s bem legal. A vendedora Cátia disse que combinam com meu All Star azul-marinho. Já passa da meia-noite, a vinheta da Globo indica que a Sessão Coruja está começando e eu ainda em casa.

Daqui a pouco passa o Cohab Linha 2 da meia noite e trinta e vem cheio. A  turma do bairro não vai se importar com essa chuvinha. Vou passar um perfumezinho, acho que o Denin tá bom. Tem Água da Fonte no Círculo Operário Pelotense e o San Remo toca no Planalto, dúvida cruel. Vou descer do ônibus na Deodoro esquina com a Voluntários, caminho até o Calçadão da Andrade Neves prá tomar uma caipirinha no Forno. Lá eu resolvo. Acho que vou até Círculo Operário curtir o Água da Fonte. Aquela mina canta muito. O ônibus tá chegando, hora de partir.

Como imaginei a turma da Cohab-Tablada não se assustou com a chuva fina que cai e o ônibus está lotado. Quase todas as janelas fechadas por causa da garoa. O cheiro no interior de um ônibus em um sábado à noite não é o mesmo cheiro de uma sexta-feira à tardinha. As gurias da Tablada, sempre muito cheirosas, capricharam. Os perfumes de sabonete Phebo, de Neutrox, de Almíscar e do Patchouli se misturam no ar.

Opa, já estamos no Centro. O cheiro de filé e cebola na chapa invade o coletivo. É a Bento. Vontade de descer e comer um bauru. Mas, ainda é muito cedo. Se sobrar uma grana, mais tarde, quem sabe? ...Nunca sobra. Desço na esquina da Deodoro com Voluntários e sigo em direção ao calçadão. A noite está feia, a umidade escorre pelas paredes escurecidas pelo cimento penteado, mas aqui no Centro não chove.

 Em frente a um prédio antigo com a parede amarela e um luminoso de neon com defeito encontro com Veridiana. Me contaram que ela já foi Rainha em um clube em Pedro Osório ou Dom Pedrito, não lembro direito. Veio prá Pelotas cursar faculdade e arrumou um trabalho nessa casa. Um tubinho preto muito justo, todo em couro, cobre seu corpo magro até um palmo acima do joelho. Nos pés, ela calça uma bota preta com um salto médio, também de couro, marca Catleia número 36 (fui eu quem vendeu). Lembro-me dela sentada na poltrona da loja com uma minissaia bem curtinha e eu ajudando a calçar a bota com o nariz a um palmo de seu joelho. Uma gabardine clara desabotoada na frente a protege do frio e da chuva fina. Na cabeça, um pequeno chapéu de abas curtas e plumas coloridas.

-E a bota ficou boa?

Ela me olha, sorri, traga um fino cigarro e responde ao mesmo tempo em que solta a fumaça;

-Claro, olha só!

Ela compra roupas caras para seu trabalho e trabalha muito para pagar essas roupas. Sigo meu caminho.

Na esquina da Osório, saindo da Padaria Antônio Maria, ouço a voz do meu amigo Mário:

-Jorginho, prá onde vais?

-Círculo Operário. Vamos nessa?

-Claro que não, vou pro Chove. Lá tem concurso de Break.

Durante a semana o Mário tem o cabelo curto, rente à pele da cabeça. No sábado à noite o cabelo vira black power. Não sei como ele faz isso. O meu amigo coleciona LPs de Black Music, prêmios conquistados nesses concursos de dança.

Entro no Forno, não há ninguém conhecido. A lancheria esta quase vazia. Não vou ficar. Mais adiante, um amigo de infância que não vejo há um longo tempo vem ao meu encontro: o Gerinho.

-Gerinho? Nunca mais te vi.

-Claro, Jorge, fui prá São Paulo ficar famoso.

-Ha,ha. E conseguiste?

-Mais ou menos. Vim ver minha mãe e volto segunda.

-Legal. Prá onde vais a essa hora?

-Num lugar chamado Misturança. Conheces?

-Já ouvi falar. É só dobrar na Quinze, no meio da quadra.

-Vem junto?

-Não! Melhor, não. Boa noite.

O Gerinho tem quase um metro e noventa de altura e ainda caminha sobre um Scarpin com quinze centímetros de altura. Ele dobra a esquina e desaparece. Talvez a gente nem se veja mais.

Logo à frente avisto duas garotas que devem ter entre dezesseis e dezoito anos. Vestem jaquetas e minissaias de couro, calçam coturnos, usam correntes penduradas pelas roupas e tingem os cabelos de roxo, verde e vermelho espichados para cima. Aproveitam o escuro da rua para pichar uma parede recém pintada com os dizeres: ''OS NAJAS''. Conheço essas minas do calçadão. De dia são bem comportadinhas.

Já ouço o som do contrabaixo. Aos poucos, a voz da cantora começa a surgir à minha frente. Pouca gente em frente ao clube. Muita gente lá dentro. Pego o ingresso e entro. As luzes do conjunto e um globo giratório no centro do salão diminuem um pouco a escuridão.

Como diz o Lulu: Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite.


(*) Jorge Santos é morador da Praia do Laranjal, é meu amigo, e seguido publica “nas redes” uma série de crônicas que tem o título geral de Histórias do Jorgito. Isso vai virar um livro, ah vai!

 

16 de outubro de 2022

A Taça do Mundo é Nossa

 

Fotografia de capa Luiz Carlos Vaz

A TAÇA DO MUNDO É NOSSA


Luiz Carlos Vaz (*)


Como vou lançar na próxima Feira um livro sobre futebol – “A Taça do Mundo é nossa”, vou começar a postar alguma coisa sobre o tema para provar a vocês que eu entendo (ou pretendo aprender com vocês) alguma coisa do assunto.

Tenho aqui nas prateleiras vários livros sobre futebol; títulos como Cuentos de Futbol, do Schlee, Futebol ao Sol e à Sombra, do Galeano ou o maravilhoso livro sobre o Heleno, aliás, sobre o “Dr. Heleno de Freitas”, do Marcos Eduardo Neves, e 99% dos livros publicados por GGM. Às vezes até pesquiso sobre o assunto e quando posso colocar meu guru, o Gabo, nessa coisa toda, fico até entusiasmado.

Pois foi com um ar de Jean-François que consegui localizar um raro texto do GMM, publicado no El Heraldo - um “periódico” de Barranquilla, em 1951, sobre o Heleno, que me ocupou esses últimos dias. Heleno ainda era famoso, mas estava já na fase final da sua carreira e jogava, segundo diz García Márquez, pela segunda vez no “Club Deportivo Popular Junior Fútbol Club”. Aí já me achei em condições de usar o nome completo do grande Jean-François Champollion. Até porque já me sentia o próprio.

Heleno, que nasceu em 1920, já contava com 31 anos; atuara desde 1939 no Botafogo, e em 234 jogos marcou 204 vezes; jogou em outros clubes por poucas temporadas. Foi convocado para a Seleção Brasileira pela primeira vez em 1944, e esteve presente nessa lista de jogadores até 1948; atuou em dezoito jogos e marcando 14 gols com a “camisa branca” da CBD.

Sobre ele, diz Ruy Castro: “Heleno de Freitas deixava um rastro de carnaval por onde passava. Primeiro pelos dribles e gols com a camisa do Botafogo – foi o grande ídolo da Estrela Solitária na era pré-Garrincha. Depois, pelo aroma de lança-perfume que o envolvia, e não apenas nos três dias de folia”... “em campo era o carrasco dos adversários e dos companheiros, que ele humilhava por igual com seu inatingível perfeccionismo; fora dele, era o sedutor irresistível, que circulava pela sociedade carioca dos anos 1940 e arrebatava as mulheres”... “da praia aos estádios, das boates ao hospício, tudo isso em 39 anos de vida”...

Sobre o jogador há inúmeras definições de antigos companheiros a respeito do fato de ser um verdadeiro craque, muito catimbeiro, boêmio inveterado e arrumador de encrenca; mas sobre o Dr. Heleno, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, casado, pai de um único filho, isso pouco interessa ao futebol.

Na segunda e última passagem por Barranquilla, Garcia Márquez diz que ele “era um homem completamente diferente, dois anos mais velho... já passado pelo torno de uma consciente e multitudinária análise, cujos resultados ainda são desconhecidos, o que impediu a todos que entendem de futebol atrever-se a dizer se Heleno é um gênio ou um palhaço sem o perigo de ter que se retratar no domingo seguinte.” Num outro trecho de seu texto ele diz: “Em nenhum caso uma partida da qual participe Heleno tem a probabilidade de se transformar num logro, porque vaiar, da mesma maneira que aplaudir, é uma forma coletiva de reconhecer publicamente um fato.”

Galeano diz no seu livro Futebol ao sol e a sombra, que em um jogo contra o Flamengo, em 1947, “Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e se voltou sem deixá-la cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação. Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil. Se a bola caísse no chão, estava perdido. E então Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas. Ninguém podia tirá-la sem fazer falta, e estavam na zona de perigo. Quando chegou às portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou”.

No conto Verdad y mentira sobre Hugo Del Carril y el gran Heleno de Freitas (na época, 1949, jogando no Vasco da Gama), Schlee, já quase ao final, narra: “En esso apareció Heleno. Heleno de Freitas, de cabello bien peinado repartido a los dos lados. Heleno, el gran Heleno de Freitas, el inigualable, como em um cuadro, em uma fotografia de revista... (não vou contar o final...)

...

A Taça do Mundo é nossa, meu próximo livro, que já tem sessão de autógrafos marcada para o dia 9 de novembro, é uma publicação de Edições Ardotempo, de Alfredo Aquino. Aguardo todos vocês lá... Vamos conversar sobre tudo, menos sobre futebol, coisa que vocês entendem muito mais do que eu. Eu só sou metido a Champollion.

A 48º Feira do Livro de Pelotas acontecerá de 28 de outubro a 15 de novembro nos tradicionais corredores e passeios da Praça Coronel Pedro Osório.

...

Aldyr Garcia Schlee - Verdad y mentira sobre Hugo Del Carril Y El Gran Heleno de Freitas. Cuentos de futbol; Ediciones de Banda Oriental, 1995, pp 88/94

Eduardo Galeano – Futebol ao sol e à sombra. LPM Pocket, 2004

Gabriel Garcia Márquez - Heleno de ponta a ponta. Textos do Caribe vol 2; Record, 1981, p 181

Marcos Eduardo Neves – Nunca houve um homem como Heleno. Editora Zahar, 2012.

...

(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo, Escritor e editor deste Blog


26 de agosto de 2022

ORDENHA DE SANGUE

                                                                                           Foto Luiz Carlos Vaz

Ângelo Alfonsin (*)

a vida ordinária

ordena

a ordenha diária

sobrevive-se 

das sobras do viver

das dobras dos braços

a carregar nas costas

ossos mais desossados

que o seu

uma fartura de objetos

abjetos

no cardápio comida

para todos os desgostos

mãos tatuadas de fome

recolhem

restos de morte

para sustentar

destroços de vida

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(*) Ângelo é um poeta. Ponto!


16 de agosto de 2022

Esperança

 

                                                                Fotografia Luiz Carlos Vaz


Maria Clara Michels (*)

A esperança rompeu o invólucro

onde a mantinha prisioneira aquecida, alimentada,

aconchegada ao peito e se foi.

Com uma trouxa às costas como criança pequena em fuga,

levou sonhos e noites estreladas

e se evadiu por um corredor polonês

de guardas constrangidos

que só lhe deram tapinhas na cabeça

e mandaram abraços para a família.

 

Sufocada pelo silêncio,

atormentada pelas palavras não ditas,

pelas frases dúbias,

pelas injunções e subterfúgios, se foi.

Ainda passou a mão no pássaro azul de Bukowski,

que eu mantinha de reserva numa gaiola dourada

e deu um aceno para a menininha de olhos verdes

do décimo quarto andar do Quintana.

 

E então se espalhou pelo mundo,

distribuindo de suas trouxas e mochilas

o brilho no olho

emprego e salário teto e comida na mesa

e amor retribuído.

E eu, eu ainda tenho esperança,

de que, em suas andanças pelo mundo,

me encontre um dia.

E pelas minhas costas 

toque com sua mão suave meu ombro esquerdo

e me envolva num apertado abraço,

num longo e demorado abraço

de amigo que voltou do exílio.

 



Maria Clara Michels,
em noite insone de 16 de agosto de 2022

________________


(*) Maria Clara mora na praia do Laranjal, em Pelotas; é jornalista, cronista e poeta.

3 de maio de 2022

poema sem nome



ângelo alfonsin

convite para perder-se

dos tais caquinhos

desprendidos da memória

moídos pelo esquecimento

medo só se for da paz

dor que não presta mais

nem para doer

vazio é o túmulo

o que há ali ?

solidão: um imenso pleonasmo

e

o

corpo inaugura

a

experiência de ser

livre


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Mais de Ângelo Alfonsin no marcador

28 de abril de 2022

Que tiro foi esse, viado?

 


Imagem: divulgação da Internet



Athos Ronaldo Miralha da Cunha (*)

Quando vi a notícia de que o ex-ministro da educação disparou um tiro no aeroporto, fiquei me imaginando ali pelas redondezas em algum balcão de atendimento. O cagaço seria grande.

Após o estado de estupefação de tão inusitada notícia, veio em minha mente a música “Que tiro foi esse?” da Jojo. Teria outra? 

Na minha santa ignorância achei que o cara iria ser indiciado por tentativa de homicídio sem a intenção de matar. Mas uma bolsa de água quente nas costas é para poucos. Costas quentes e amigo do rei. 

Nessa história toda a guria da Gol deve dar graças aos céus. A tragédia poderia ser fatal para ela. 

Se eu fosse escrever uma ficção em que um ex-ministro dispara, acidentalmente, uma arma no aeroporto, a bala mataria alguém. Certamente. Eu faria a bala acertar um deputado... um senador... porque a gente tem que dificultar a vida do personagem. Na melhor das hipóteses eu faria a bala acertar a tornozeleira eletrônica de um condenado. Sei lá, outro deputado. 

E por falar em tornozeleira... a capacidade desse povo de provocar fatos políticos é fora do comum. A bala nem foi recuperada e um deputado federal assume como membro titular da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Ostentando um “invejável” adorno: uma tornozeleira eletrônica. É a dialética do absurdo. 

A esculhambação é geral e irrestrita. Nesse furdunço em que se transformou o país, ninguém mais se entende. Entende? 

O fulano não tem a menor condição de ser portador de um bodoque e o beltrano deveria ir para a comissão da faxina no xilindró.

Mas calma que tem mais. Eu nem quero imaginar onde vai ser o próximo tiro acidental. 

Na minha ficção eu daria um tiro – acidental, bem entendido? – no saguão do... deixa quieto.



Que tiro foi esse, viado?

Que tiro foi esse que tá um arraso?

Que tiro foi esse, viado?

Que tiro foi esse que tá um arraso?

[Um viva à Jojo]

(*) Athos Ronaldo, que é santamariense por adoção, é um filho de ferroviário que nasceu em Santiago e estudou engenharia na UFSM. Foi funcionário da "Caixa", participou de algumas antologias, publicou vários livros de contos e já recebeu vários prêmios literários com eles. Athos, um colorado convicto, também está presente no livro de crônicas O gol iluminado, publicado em 2009.

24 de março de 2022

A mula sem cabeça veio me buscar (na praia do Laranjal...)

Ilustração do arquivo do autor


Benhur Antonio Cruz de Lima (*)


    Era noite de inverno, vento assobiando, chuva fina e o breu da noite era assustador. Cheguei em casa por volta das nove horas da noite. Na época com 24 anos eu nada temia, Nem assombração, nem tempestade e muito menos Saci Pererê e Mula Sem Cabeça.

    Logo que me formei na Universidade Católica de Pelotas, já estava empregado e com dois bons empregos. Era redator e locutor da Rádio Atlântida FM e chefe de jornalismo da RBS TV de Pelotas, o que me garantia uma boa renda para um rapaz solteiro.

    Tratei de comprar um terreno na praia do Laranjal, e comecei a construir uma casa, sem financiamento e sem dívidas. Combinei com o pedreiro que iria construir aos poucos. Projeto de casa simples com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Concluído o fundamento da casa, ele ergueu uma parte que incluía o banheiro e uma peça. Alí fui morar e aos poucos fui construindo o resto da casa.

    Mas o inusitado ocorreu em uma noite chuvosa e gelada de uma quinta-feira. Desci do ônibus da Transportes Santa Maria, no ponto perto da Mercearia Hilda, levantei a gola do sobretudo de lã da marca Alfred, que havia sido de meu pai. Era quentinho e com mais de 30 anos de uso continuava inteiro e aquecendo. Atravessei a avenida e caminhei na pequena rua, encharcada, cheia de buracos, poças enormes que tinha de ir desviando e com fraca iluminação que dava acesso a via onde eu morava. O vento que assobiava entrava pelas frestas dos botões do sobretudo e gelavam o peito, as costas e deixavam as mãos encarangadas. Como se diz no Rio Grande do Sul, era um frio de renguear cusco.

    Entrei em casa, cansado, pois trabalhava das 6h até 20 horas todos os dias. Estava morto. Larguei a indumentária no sofá que servia de cama também, comi um sanduíche e adormeci, ouvindo os uivos do frio cortante.

    Na madrugada gelada acordei com um barulho estranho perto da minha janela. Meio sonolento levantei e fui espiar pelas frestas da veneziana para me certificar que resmungos eram aqueles. Mistura de gemido, crepitar de fogo e relinchos.

    Ao olhar, tive um sobressalto. Me veio a consciência que espantou a sonolência. O coração disparou e fiquei bem quieto. Era assustador. Estendi a mão e peguei o rosário, que ficava pendurado junto a um crucifixo sobre estante de tijolos e tábuas onde eu deixava uma estátua pequena da Santo Antônio, feita em prata, que perdi nas minhas várias mudanças. De joelhos no piso duro, puxei a rezaria. Em certa altura já estava orando em castelhano. 

    Padre nuestro, que estás en el cielo, Santificado sea Tu nombre; Venga a nosotros Tu reino; Hágase Tu voluntad en la tierra como en el cielo. Alternava para o português e suava frio. Me salve dessa! Implorava!

    Isto é coisa mandada, ou chegou minha de hora de prestar contas com o coisa ruim ou com São Pedro. 

    Alí na frente de casa estava me esperando nada menos que a

    Mula Sem cabeça. Uma bola de fogo, queimando, labareda alta na noite escura, que nem mesmo a chuva era capaz de apagar.

    Pensei em sair pela porta dos fundos e correr para a cara do seu João, um bom vizinho que sempre cuidava da casa dos outros nas ausências, mas era distante uns 50 metros. Era a moradia mais próxima. Mas se o trote da bicha for firme eu não conseguiria. Me pegaria no galope. Melhor ficar dentro de casa, rezar e esperar que amanheça.

    Aquela agonia durou algum tempo e a chuva não parava, o vento cortava o silêncio da noite.

    Mas logo se desfez o mistério do além. Quando ouvi sirenes, me animei e abri um pouco a janela, meio desconfiado. Vai que a Mula sem Cabeça me puxa e me leva. Só tinha 24 anos, jovem demais para descer aos calabouços onde governa o Capa Preta.

    Vi uma nova perspectiva. Ai fiquei valente, abri a porta, sai e respirei fundo

    Xô vai te embora daqui! Ordenei dando um tapa na anca do animal. Assustada saiu trotando rumo à escuridão.

    Enquanto isso, do outro lado da rua os bombeiros apagavam um incêndio num casebre abandonado.

    O que era a Mula sem Cabeça? 

    Quando olhei pela fresta vi um animal com cabeça de fogo, mas era um cavalo pastando, de cabeça abaixada e pelo ângulo da fresta da veneziana na minha janela, no lugar da cabeça onde eu via uma bola de fogo, era o incêndio logo adiante.

    Pelo menos a noite serviu para rezar o terço e me precaver. Tratei de colocar uma cerca e uma lâmpada de 100 velas para o lado de fora. Plantei também arruda, espada de São Jorge e joguei no portal da casa um litro de água benta misturada com cachaça de Santo Antônio da Patrulha. Não poupei gastos. Vai que…. Bem... mas hoje é quinta-feira. Estou ouvindo relinchos vou lá espiar pela janela.

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(*) Benhur Antonio Cruz de Lima é jornalista, mora em Santa Catarina, e trabalha na Rádio Joinville Cultural - 105,1 FM. Foi meu aluno, e é um cronista de mão cheia. Esperamos seu livro para qualquer momento. "Foi na rua Herval, no Santo Antonio, na Praia do Laranjal. Fato verídico e verdadeiro", ele afirma!

22 de março de 2022

Os Cem Anos da Minha Mãe

Arquivo da família


Pedro Moacyr Pérez da Silveira (*)

    Minha mãe, que daqui partiu há onze anos, treze após meu pai, estaria fazendo, neste 21 de março, cem anos. Eu nunca mais a verei. Nunca mais verei meu pai. Nunca mais nos encontraremos, seremos pó e, depois, nada. Ela já não vive, ele morto já é, assim como seus pais, meus avós, todos mortos há anos sobrepostos a outros. Mil, dois mil anos passarão, e nada de nós restará em lembrança alguma de alguém da minha espécie (se ela sobreviver, o que não me parece provável).

    Todavia, mesmo que tudo desapareça e o mundo seja formado apenas por estúpidas estrelas dançando a esmo, sem terem sequer o sentido vão que a elas emprestamos com certos esforços da mágica poética que julgamos tanger o sublime quando por aqui vivemos, ah, mesmo que tudo seja o que não é, e que talvez tenha o próprio tudo se tornando uma bolha morrente, exausta, servindo apenas para acomodar um deus único e solitário que tudo criou, mas que perdeu a paciência e também já dá sinais de que deseja se ir, e que sua única criatura restante venha a ser então essa bolha fenomenal, do tamanho que o mundo é hoje, e venha assim o universo a ser um colossal vazio, onde haverá apenas o ar adoecido para este deus triste respirar seu ar empestado e tossir seus arrependimentos, oh, mesmo que assim seja, minha mãe, quando eu nada for e nem a senhora, quando não formos nem recordação n'alguma alma vaga e ainda talvez humana - mesmo aí, nestas condições - quero que a senhora saiba que o pequeno atrito aquecido da sua mão na minha mão produzirá o raro e exclusivo pólen que instalará no meu impossível jardim a planta, linda e imaginária, do amor que um dia recebi de ti, e saberei que planta mais linda não houve, não há e não haverá no que quer que possa existir ou estar sucumbido para sempre. Tuas mãos nas minhas, mãe, tuas mãos nas minhas, quando estes apocalipses terrificantes não assustavam o teu menino porque tuas mãos estavam, aquecidas, sobre as dele. 

    Saudade, mãezinha.
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(*) O professor Pedro Moacyr é doutor em educação, diretor da Faculdade de Direito de Pelotas, e autor do livro a Memória é um cavalo selvagem, a quem foi me dada a honra de escrever a apresentação e fazer a Foto do Autor.



6 de março de 2022

Minha terceira vez


 
Maria Clara Michels Pinho (*)

    Dizem que o terceiro é o melhor. Mais perfeito, mais feliz, mais duradouro...Neste meu caso eu não sei. Ah, peguei vocês! Não, eu não falo de companheiro, marido, amante, namorado ou ficante, destinos dessa assertiva feita. 

 

    Numa tentativa de manter o bom humor e a alegria- que decididamente estado de ânimo é importante- eu estou falando sobre estar mais uma vez, a terceira, com câncer. E estou conseguindo me manter tranquila, rindo muito como sempre, o que fez minha filha me abraçar chorando quando soubemos e dizer que sou a pessoa mais forte que ela conhece.

 

    Na realidade, tão forte como tantos por aí, tanta gente da família e amigos que tiveram ou tem esta doença que antigamente era chamada de " aquela doença ruim", mas que hoje pode ser plenamente curável. E que por ter possibilidade cada vez maior de tratamento e cura, deve ser prevenida, examinada, estudada por nós todos, cada vez mais atingidos devido a estarmos ficando longevos e comendo cada vez pior, alimentos cheios de produtos indesejados, água contaminada, vivendo em ambiente poluído, sempre estressados, sempre correndo...

 

    E é por isso que falo tão claramente sobre essa minha terceira vez. Porque a palavra câncer tem de ser exorcizada, a doença em si não pode ser mais escondida, não deve ser estigmatizada, temos de enfrentar como a qualquer uma outra, sem melancolia, sem lágrimas ( talvez algumas, no início do processo de aceitação), com força e coragem, porque realmente acredito que um ânimo elevado, uma boa disposição ajudam...

 

    E é isso. Cirurgia marcada para terça- feira próxima, com o Dr. Ricardo Haack, que além da competência traz mais alguma coisa para o pacote, pessoa que, com as irmãs, brincou com meus filhos na infância e de quem sempre fui muito amiga da família. E após, acompanhamento clínico com a Dra Silvia Saueressig, outra que tem me acompanhado com carinho e profissionalismo. E, como o Ricardo, é amiga e ainda é prima em segundo grau.

 

    A Ju, a Luna, o Nico, meus cunhados Paulo e Ala me acompanham todo tempo: levam e trazem dos exames, dos consultórios médicos, dos processos de internação e , em casa, não me deixam fazer nada. E as manas também já estiveram comigo oferecendo apoio e ajuda no que for preciso, mas acho que tiramos de letra. Só me restando agradecer.

 

    Como da última vez, há dois anos, o meu pedido: sem choro, sem vela, sem fita amarela. Carinho sim, lamentações não. Nada de mensagens tristes, que triste não quero eu ficar, reze quem for de orações, torça quem preferir , mentalizem os místicos todos e mandem beijos, abraços , o afeto de vocês e só.

 

    É isso que eu quero e é isso que eu espero de vocês. Aqui já estamos todos fortes, dispostos a enfrentar mais essa e a comemorar com muito ruído depois. 

 

    Como disse a Sílvia: pensa que é só mais um. No meu currículo, essa vai ser a 15a. cirurgia . Só mais uma, então. 

 

(Para a mãe, esteja onde estiver: "Estou arredondando, mãe!". Porque ela ia contando a cada vez que me operava e brincava quando se chegava a um número quebrado"  vamos arredondar, vamos arredondar!" E quando tive câncer pela primeira vez e a palavra ainda era um palavrão, há mais de 30 anos, ela me acompanhou a todas as sessões de quimioterapia, sempre preocupada, sempre de mãos dadas...)

 

(*) Maria Clara é Jornalista e mora em Pelotas

2 de março de 2022

Abel agora mora comigo

O livro A História de Abel e o TCC da Giulia

 

Giulia Viapiana (*)

Abel mora comigo há mais de um mês. Nesses últimos tempos eu o observava e sempre lhe dizia: “Abel, tenho que estudar”; “Abel, agora não dá”. Até que nesse feriado, depois da apresentação do TCC, Abel me esperava paciente, com muitas histórias para contar - então corri para o abraço!

A história de Abel é cativante e em uma única tarde de domingo, entre chuva e um calor escaldante, passeei com o tio Vaz pelo Rio Grande. Na Rua Corrientes, 348, entre a navalha Solingen e as velas votivas, até me imaginei voando no Perigo Verde e ouso dizer que nesse ano, sem carnaval, não teremos problemas com o Araçá! Ah, se eu tivesse irmãs mais velhas… talvez hoje comeria Tupy, pois compartilho do mesmo pensamento sobre as marmeladas.

A História de Abel e as memórias do tio Vaz e da dona Loracy são uma brisa fresca nesses dias quentes de verão. Ao fim da leitura, já no agradável final da tarde, me pergunto quem serão os contadores de causos da próxima geração (e teremos histórias para contar?!) e não tenho uma resposta.

Sei que minha futura colega e parceira de debates, Maribel, vai dizer que não existe herança de pessoa viva, mas tio Vaz, amigo que recebo de herança do meu pai, foi um prazer ler tuas histórias!


(*) Giulia Viapiana Corrêa, graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, ávida leitora e atenta ouvinte de histórias. Já atuou na Comissão de Processos Administrativos Disciplinares da UFPel, nas Demandas Judiciais do INSS e na 3ª Promotoria Criminal do Ministério Público. Atualmente desenvolve atividades na Defensoria Pública do Estado.


10 de fevereiro de 2022

E Abel foi conhecer a Criúva

 

Rogeane lendo "o Abel". Foto do arquivo pessoal

Rogeane Bertussi (*)


Prof Vaz!

    Como já disse, passei uma manhã no salão de beleza (tentando minimizar um problema causado por outro cabeleireiro) e aproveitei para ler. Aliás, sempre tenho algo para ler nas minhas bolsas, no quarto, na sala, no carro, na parada de ônibus … não perco tempo.

    Eu cresci ouvindo histórias, minha família gosta muito disso. E, ao ler as suas, lembrei-me de algumas das minhas, que descrevo abaixo:

    Pensei em começar comentando a história do safado do Abel. Mudei de ideia. Aquele fujão foi homenageado em nome de capa de livro … isso basta.

    É raro alguém admitir que fez o primário e o ginásio. Eu fiz, e na minha casa também tínhamos “Frigidaire”.

    Como você, eu apreciava “cumulonimbus”, mas deitada na grama, repleta de micuim, eu rezava pedindo que quem fizesse aqueles desenhos viesse me buscar, porque eu estava perdida entre três manos homens que contavam que eu havia sido deixada na porta, que a cegonha era muito magrinha (eu pesei 4,650 kg) … e me deixou cair … e isso me dava certeza de que eu não era daquela família e, quem sabe, nem do planeta Terra.

    Meus manos não me ensinaram a empinar pandorga. A minha nunca saiu do chão, por mais que eu corresse. Tentei ensinar meu filho… mas ensinar o que mesmo?

    Não me deixavam tocar no “estojo” deles; riam quando eu dizia que nunca via o passarinho na hora da foto; …

    Certa vez ganhei um concurso de redação na cidade de Caxias do Sul. Não era sobre o Dia da Árvore. Era sobre “Santos Dumont”.

    Nooooosssssa! Como eu fiquei feliz!

    O prêmio era um passeio de avião por cima da cidade. No dia marcado tinha serração demais; noutro ventava muito; chovia a cântaros; o piloto teve diarreia; perderam a chave do teco-teco… 16 tentativas e 16 desistências … Fiquei frustradíííííssima e ainda apanhei da minha mãe pela insistência. Ela cansou de me levar ao aeroporto.

    Para esquecer disso passei a voar nas leituras. Com isso, todos os meses, daquele ano e dos próximos, eu ganhava um lápis da bibliotecária, por ser a aluna que mais lia. (Todos iguais, pretos. E eu só tinha uma caixinha de 6 cores …).

    Eu nunca comi Tupy e aposto que você nunca comeu “tatu assado no casco”, sendo servido de colher pela sua mãe, fazendo você engolir - mesmo não querendo - aquela coisa “fedorenta” que impregnou, por dias, odores fétidos em toda a minúscula casa em que morávamos.

    Eu tinha muita dificuldade com comidas. Não gostava de nada e normalmente era forçada a comer.

    Você “quase viu” o Pelé jogar, “assistiu” o Roberto Carlos e eu “conheci e passei alguns dias” com Anna Sharp, neta da Ana Emília Ribeiro da Cunha, amante do Dilermando. Ela é amiga do meu mano Cidnei, que mora no Rio de Janeiro, e tive a oportunidade de visitar a casa dela em Santa Tereza, repleta de fotos antigas.

    Também usei caderno Avante mas estava doente no dia em que o fotógrafo foi na escola, por isso não tenho foto sentadinha, na classe, com o globo à minha esquerda. Outra frustração …

    La na Criúva ainda tem a mesma praça, o mesmo banco, o mesmo número de habitantes, em torno de 2000. Nascem, crescem, vão embora, voltam, morrem e sempre tem 2000. O que mudou é que a tradicional festa anual do Divino Espírito Santo está cada vez maior, perdendo apenas para a Festa da Uva.

    No tempo em que usava maria-chiquinha o que me cativou foi “Emília na Casa das Chaves”. Foi assim que a professora Maristela intitulou uma breve leitura como introdução ao livro de Monteiro Lobato. Fiquei fascinada com aquilo de abrir uma porta, entrar em algum lugar e mudar de tamanho. Na biblioteca da escola não encontrei o referido livro. Passei anos procurando por ele e somente quando eu já tinha mais de 50 anos uma professora me disse: esse não é o nome correto do livro. O certo é “A chave do Tamanho”. Procurei na internet, comprei, chegou meio detonado … mas adorei a história.

    Na Criúva, nunca ouvir falar em arsênico e por lá as mortes frequentes foram por enforcamentos.

    Já na cidade, meu pai comprou nossa primeira TV para assistirmos a copa de 70. E era só isso que podíamos assistir. Então meus manos continuaram frequentando a janela de uma vizinha, para assistir o Ted Boy Marino e os “soqueadores”. Eu, não largava o Almanaque do Biotônico. E no ano anterior, na janela da vizinha, fiquei muito empolgada com a possibilidade de fugir de casa e ir para a lua. Se o “Nil” pisou lá eu também poderia. O que me amedrontou um pouco foi pensar como eu usaria o remédio da asma com aquele capacete … mas seria bem legal só engolir comprimidos e nunca mais ter que comer feijão, carnes, repolho, tatu …

    Não vou relatar aqui “as frases que ficaram” para não competir com as do relato obsceno no (quase) tudo sobre minha mãe. Acontece que sou descendente de mãe italiana e embora com muitos tios, primos e irmãos, não aprendemos a usar as primas pobres das palavras (palavrões) e, quando isso era necessário, os mais velhos falavam em italiano, num dialeto que não nos foi permitido aprender porque com a guerra havia sido proibida a língua italiana na região. Mas pelas caras … sabíamos que não eram boas coisas.

    Meu pai também tinha um medicamento similar ao Conmel. Fora receitado pelo farmacêutico que por lá aparecia de tempos em tempos. O medicamento milagroso podia ser feito em casa: bastava um vidro limpo que devia ser ocupado com “mastruz”, também limpo, e preenchido com cachaça pura, sem qualquer adição de açúcar. Para qualquer mal, um gole daquele coquetel horrível era ministrado, inclusive para crianças. Pior do que aquilo… só a Emulsão de Scott, que muito tomei.

    Nunca ouvi falar em cal virgem por lá. O doce de batata doce era o gran finale dos almoços de domingo.

    Meu pai trabalhava no moinho e viajava de caminhão entregando trigo. Ficava dias fora de casa então pensou que um cão poderia nos dar uma certa segurança. O nosso “Ali” chegou no final da tarde e na manhã do dia seguinte foi levado embora. Ele latiu a noite toda e ninguém dormiu. Meu pai não gostou nada daquilo. Então, nada de gatos, cachorros, periquitos … somente bois e galinhas.

    Adorei a história da Cabrita e seus ensinamentos.

    La em casa volta e meia uma das nossas galinhas ia para a panela e nenhum de nós queria almoçar. Elas tinham nomes e costumávamos olhar no fundo dos olhos delas. Então era sempre uma tristeza quando uma desaparecia misteriosamente para aparecer na panela mais tarde.

    Foram tantas as lembranças que o seu livro me trouxe... Dava até para escrever um livro, mas para quem tirou apenas "um 7" no trabalho sobre o Repórter Esso… é sonho demais.

    Querido prof. Vaz, muito obrigada por ter socializado algumas das suas memórias no A História de Abel.

    Adorei, só lamento não ter percebido, nos tempos em que fui sua aluna, o que aquele sargento observou.

    Abraços carinhosos com desejos de que muitas outras memórias possam ser eternizadas.

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Rogeane de Fátima Bertussi nasceu em Criúva, distrito de Caxias do Sul (RS); é Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas (UCPEL); pós graduada em Administração Bancária (FEBRABAN); atua em instituição financeira estatal há 36 anos e como cerimonialista há mais de 30; e, voluntariamente, no Movimento Espirita há 25 anos.

Tem como hobby ler, viajar, conhecer outros povos, outras culturas, museus, igrejas, assistir filmes …

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9 de fevereiro de 2022

A História de Abel

 

Foto Inara Veleda Dias


Flávia Schlee Eyler 

Um livro e tanto! Enfrentar os meandros da dona Memória é aceitar o traiçoeiro poder das musas. Em nossa tradição elas são capazes de dizer o presente, o passado e o futuro, mas também são capazes de inventar.

Atravessados pelos mistérios do tempo, os homens, seres dotados de memória, vivem a tensão entre impulso e liberdade, acaso e necessidade, vontade e poder entre outras tantas forças do querer. Construir um mundo para si, é tarefa humana complexa e diversa nas mais distintas culturas. A pauta das possibilidades humanas é inesgotável e as dificuldades também. Assim, sob a chuva que vai chover, o sol que vai nascer e se pôr, as estações que vão se suceder, o dia e a noite que vão se alternar, os vulcões que vão entrar em erupção ou não, criamos mecanismos que possam garantir o mínimo de previsibilidade. Na impermanência das permanências ou vice-versa, há incontáveis formas com as quais seres humanos podem contar.

O caso do processo civilizatório ocidental, com sua crença no progresso, é uma faceta, das mais perversas, da capacidade humana de construir um mundo. Neste caso, um mundo ancorado em crenças e demonstrações que ignoraram qualquer conceito sobre a vida humana que saísse do idealizado. Longe de considerar tal questão, é preciso perceber que, por mais cruel e forte que a dominação ocidental tenha sido, ela jamais conseguiu implantar e controlar a vida humana. Mesmo sob as mais terríveis e violentas condições de sobrevivência, a vida se impôs e é neste sentido que a leitura de História de Abel se mostra, para mim, como benção e possibilidades.

Cada uma das crônicas é um cais em que podemos pedir abrigo e reconhecer com segurança traços comuns no sentido mais humano de um pertencimento compartilhado. Tradições milenares são apanhadas nas redes que arrebanham coletivos. Há rebanhos, cardumes, matilhas, constelações, lonjuras e muitas infâncias embrulhadas em cada cais do grande cais que é a vida escrita por Luiz Carlos Vaz! As fotos e as imaginações são capazes de nos incluir em genealogias rurais, urbanas, vilarejas, aéreas e marítimas. Filiação de sangue, mesa, cama e banho nos confortam em cada cais e realmente a memória ganha o tamanho das musas, de todas elas: Calíope, Clio, Érato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Terpsícore, Talia e Urânia.

Desta forma, o grande Cais de Vaz se desdobra entre as nove musas com poesias erótica, lírica, heroica, cômica e trágica; com a história, a dança e a astronomia.

Uma festa da qual sinto orgulho imenso em participar!

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Flávia Maria Schlee nasceu em Seara (SC), possui graduação em História (PUC-Rio), Mestrado (UFF) e Doutorado em Literatura (PUC-Rio).

Professora e pesquisadora em História Antiga e Medieval (PUC- Rio). Professora e pesquisadora no Mestrado e Doutorado em História Social da Cultura (PUC- Rio), na linha de Teoria e Historiografia. Área de interesse: relações entre linguagem e mundo na escrita literária e poética ocidental em língua portuguesa.