23 de agosto de 2012

O ano dos Centenários - IX, Nelson Rodrigues


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Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.
Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.
E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista.
Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino).

  
  Nascido em 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco, Nelson Falcão Rodrigues mudou-se em 1916 para a cidade do Rio de Janeiro. Trabalhou no jornal A Manhã, de propriedade de seu pai, Mário Rodrigues, também pai do jornalista Mário Filho, que dá nome ao estádio do Maracanã. Foi repórter policial durante longos anos, onde acumulou uma vasta experiência para escrever suas peças a respeito da sociedade. Sua primeira peça foi A Mulher sem Pecado, que lhe deu os primeiros sinais de prestígio dentro do cenário teatral. O sucesso veio com Vestido de Noiva, que trazia, em matéria de teatro, uma renovação nunca vista nos palcos brasileiros.

  A consagração se seguiria com vários outros sucessos, transformando-o no grande representante da literatura teatral do seu tempo, apesar de suas peças serem tachadas muitas vezes como obscenas e imorais. Em 1962, começou a escrever crônicas esportivas, deixando transparecer toda a sua paixão por futebol. Faleceu em 21 de dezembro de 1980, no Rio de Janeiro, no domingo em que acertava os 13 pontos da Loteria Esportiva em um bolão com amigos.

  Grande frasista, deixou muitas pérolas como: "O dinheiro compra até amor sincero” ou “O brasileiro é um feriado”. 
(Baseado em Wikipédia)

  Sua obra teatral foi levada ao cinema e televisão onde ganhou grande público. No jornal escrevia uma crônica diária, que também virou seriado, A vida como ela é. Separei dele um texto antigo, que trata de um problema muito nosso, muito brasileiro, que ele chamou de “complexo de vira-latas.


Complexo de vira-latas
.
Nelson Rodrigues

       "Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

       Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: - “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.

       E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

       Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

       A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: - “O que vem a ser isso?”. Eu explico.

       Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

       Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão."
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Nota - Publicada originalmente na revsiata Manchete Esportiva de 31 de maio de 1958. Última crônica de Nelson Rodrigues antes da estreia do Brasil na Copa da Suécia. Extraída do livro "À Sombra das Chuteiras Imortais - Crônicas de Futebol" (Ed. Companhia das Letras), e publicada no Blog Bipolar Flexível
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4 comentários:

Anônimo disse...

Mário Filho não era pai do Nelson Rodrigues, e sim seu irmão.

Luiz Carlos Vaz disse...

Verdade, Anônimo, ele é irmão de Mário Filho, filho, como Nelson, do jornalista Mário Rodrigues. Um abraço e obrigado.

olmiro muller disse...

Jornalismo e teatro à parte, Nelson Rodrigues foi um dos maiores reacionário que o país conheceu, tanto que era um defensor convicto da ditadura militar. Por ironia do destino, seu filho era adversário de regime e, por isso, foi preso e torturado. Nelson tentou interceder junto a seus "ídolos", mas não conseguiu bom resultado. Pergunto: os dotes literários de alguém superam a rejeição que provoca quando apóia regimes ditatoriais?

Anônimo disse...

A arte supera tudo, está acima da escatologia ideológica, viva a arte
pricipalmente a rodriguiana.
Nelson Rodrigues é o nosso Shakespeare, fazia de um acontecimento banal um drama, uma tragédia que se discutirá enquanto houver mundo.
Viveu sempre no futuro como um visionário, quando o presente recusava assuntos proibidos pela moral vigente(incesto).
Fluminense de coração, como não poderia deixar de ser, Nelson deve estar em alguma esquina do nada com o Félix ("dream team" de 70).


Abraço