Um fantasma no Cunhatay
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Gerson Luis Barreto de Oliveira
Bagé 1814. Não consigo imaginar como eram estas paragens e
todas as mudanças que a região teve nesses 198 anos. O que era mato virou o
traçado da nascente cidade, o que era um povoamento irregular de militares em
guerra contra os espanhóis, virou, a principio, a parte velha, o entorno da
Catedral de São Sebastião...
Guerras, sim, mas também cidadãos chegavam para trabalhar a
terra e criar o gado, foi assim que o sesmeiro Manoel Pinto Barreto recebeu,
nesse ano de 1814, das mãos de D. Diogo de Souza, 1º Conde de Rio Pardo, as
terras da família.
O Brasil, elevado a Reino Unido do Brasil, e Portugal, tinham
a Família Real dos Bragança residindo na corte e os portos haviam sido abertos
às nações amigas. Mas a Espanha colonial já não existia, estava dominada por
guerras intestinais. O Brasil queria tomar partido para obter o quinhão que,
por direito, achava seu, e também a antiga Colônia do Sacramento, no nosso vizinho
Uruguai.
Manoel Pinto Barreto e Carlota Joaquina Barreto |
Em Bagé Manoel Pinto Barreto casou com Carlota Joaquina.
Eles tiveram cinco filhos, pois era necessário procriar e povoar a região.
Destes filhos resultaram inúmeros netos, e dois deles foram prometidos em
casamento, um para o outro. A promessa era que Álvaro de Mattos Barreto casaria
com a prima irmã, Amélia Simões Barreto. Já no final do século XIX o casamento
entre primos foi uma fórmula empregada e muito difundida para evitar a partilha
dos campos.
Esse casal de primos não poderia ser mais diferente. Água e
azeite, e não poderiam dar certo. O casal teve grande descendência, mas vivia às
turras, ele alegre e brincalhão, ela devota, achando que o nascimento dos
filhos doentes era um castigo dos céus. Dos 17, somente cinco sobreviveram.
Hoje sabemos que o laço de consanguinidade era o vilão de tudo. Mas para
Amélia (Melica, para os da família) era o fim. Tanto sofreu que até de religião
trocou, virou uma fervorosa anglicana. Os reverendos ingleses começaram a surgir por
Bagé, Dom Pedrito, São Gabriel, Santa Maria, carregando levas de fiéis das hostes
do catolicismo ao anglicanismo.
Toda a saga da família se desenvolveu às margens do Arroio
Santa Maria Chico, aos pés do Cerro do Cunhatay, Distrito dos Três Cerros, hoje
Dom Pedrito. Esse cerro é o local mais alto e bem posicionado da região.
Lembro de quando eu criança ouvir meu avô, Idelmar Simões
Barreto, filho do Álvaro e da Amélia, contar que naquela região os jesuítas,
após a queda dos Sete Povos das Missões, precisavam achar uma rota de fuga, e
no alto do cerro colocaram vigias para alertá-los da chegada das tropas
inimigas que andavam no seu encalço.
Meu avô contava que, quando criança, via tamanduás comendo
ninhos de formigueiros nos campos, que ainda existiam jaguatiricas nos matos. As
avestruzes, ele e o pai, foram os responsáveis pela dizimação nos campos do
Cunhatay. Adoravam comer omeletes feitas com aqueles ovos enormes. Meu avô ria
e mostrava o binóculo usado pelos dois para localizar os ninhos.
O binóculo usado pelo meu avô e que guardo até hoje |
O trabalho duro era feito pelos escravos, não eram muitos,
mas a trabalheira não era fácil. Eles ergueram as divisas de pedras entre os
campos, construíram o grande mangueirão de pedra e a casa, com grossas paredes
de 60 cm, todas feitas de pedra. Havia um dos pobres escravos que se destacava.
Foi o escultor dos cochos para os animais tomarem água, da grande queijeira,
toda entalhada em hexágono, que minha mãe até bem pouco tempo utilizou para
fazer os queijos que a deixaram famosa pela gostosura que eram. Eu, que a vi
fazer, ficava imaginando quanto leite escorreu pela abertura daquela peça de
pedra.
Um desses escravos, de uma época remota, e que traz uma nódoa
que até hoje se repercute no nosso Brasil, se desesperou, e um dia amanheceu
enforcado num galho de umbu, próximo da porta da cozinha. Ele ficou sendo o fantasma,
a personagem principal das histórias de assombração que nos contavam antes de dormir, e que faziam
com que tratássemos de fechar os olhos rapidamente, naquelas imensas noites, naquelas longas noites povoadas de sonhos, nquelas distantes noites da nossa infância no Cerro Cunhatay...
Gerson Luis Barreto de Oliveira
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