9 de maio de 2011

The book is on the table - X, Decifra-me ou te devoro

Os temíveis enigmas do Bezerrão foram decifrados pelo Salvadoretti
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Por
José Luiz Salvadoretti
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Engenheiro Mecânco
UFRGS - turma de 1979 -1º sem
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Durante todo o período do ginásio e do científico (ou clássico), após as longas férias de verão do Estadual, uma coisa tornava o retorno às aulas mais interessante: a nova lista de livros. Português, História, Geografia, havia sempre uma curiosidade em saber o que eles teriam de novo em relação aos do ano anterior. Sempre havia algo, claro... mas acho que a mudança mais marcante foi quando, no primeiro ano do Científico, fomos confrontados com o novo livro de matemática: o "Curso de Matemática", de Manoel Jairo Bezerra. Compreensivelmente apelidado de "Bezerrão" - capa dura, nada menos de 628 páginas - era quase um tijolo, até na cor da capa! Acostumados a livros literalmente mais leves, aquilo foi um choque, sem dúvida. Mesmo sabendo que ele deveria "durar" três anos, era assustador até para quem já pretendia a área técnica; imagino o choque para quem se inclinava a carreiras das Ciências Humanas!...

Até então, a matemática aprendida parecia, afora as quatro operações, quase inútil no dia-a-dia: MMC, MDC, fatoração, o obscuro algoritmo para calcular a raiz quadrada, e até a dita "matemática moderna" pareciam coisas sem utilidade prática, que estudávamos apenas para passar nas provas. Por isso, passado o susto inicial, tive a surpresa de descobrir que o temível "Bezerrão" me apresentava uma visão totalmente nova da matemática. O que ali estava era sem dúvida complexo, mas fazia sentido e era útil. Vetores, trigonometria, geometria espacial e analítica, logaritmos, sistemas de equações e matrizes, números imaginários, era todo um território novo; muito duro e áspero, sem dúvida, mas que fazia sentido e podia ser explorado - e usado.  Alguns tópicos eram tratados com mais profundidade, outros limitavam-se a pequenas introduções, mas tudo aquilo era muito diferente...e, embora difícil, me fascinou. Talvez a parte mais interessante do livro, para mim - mesmo que ela não tenha sido de fato estudada à época - tenha sido, juntamente com os números imaginários, a introdução ao conceito de "limite": o que acontece se um valor cresce ou diminui de forma extrema, até "tender ao infinito" ou "tender a zero", e o significado matemático e físico disso. Base do Cálculo Diferencial e Integral (ou Infinitesimal) proposto por Newton e Leibniz, entre outros, esse conceito quase beirava à filosofia - e entendi porque tantos grandes matemáticos foram igualmente filósofos. De algum modo aquilo aproximava e unia duas visões de mundo aparentemente antagônicas, a ciência fria e exigente e o entendimento do espírito humano; foi talvez o meu primeiro vislumbre de que o conhecimento é um todo, não apenas uma soma de partes estanques.
A primeira Régua de Cálculo comprada pelo Salvadoretti na Livraria Dom Bosco, 
em Bagé, era bem simples e vinha em um estojo de couro
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 ...já a segunda, comprada em Porto Alegre, foi esta Faber Castell, alemã, específica para Engenharia, que vinha com um manual traduzido. Com uns 40 cm e escalas que se prolongavam no verso, permitia cálculos com até 4 casas decimais com boa precisão.


E embora esse livro tenha sido apenas um primeiro empurrão, foi decisivo. Não muito depois, fui ali na Livraria Dom Bosco e comprei a minha primeira régua de cálculo - pequena, de bolso - e ela se tornou meu brinquedo favorito durante muito e muito tempo... e o meu futuro curso estava decidido.
Por isso, e com minhas desculpas aos que (assim como eu), muito sofreram sobre suas páginas, tenho uma dívida com o autor...
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J L Salvadoretti
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Nota 1:
A régua de cálculo, precursora de todas as calculadoras e computadores atuais, foi inventada pelo Pe. William Oughtred, em 1638, usando as propriedades dos logaritmos publicados pouco antes por Napier. Trata-se de um computador analógico mecânico, em que o posicionamento de uma régua central em relação a outras duas fixas (todas dotadas de diversas escalas) permite, com o auxílio de um cursor deslizante, realizar com rapidez e boa precisão cálculos que vão desde a multiplicação ou divisão até a determinação dos valores de funções trigonométricas e outras ainda mais complexas. Seja na versão de bolso, seja na "de mesa", por mais de três séculos foi a companheira absolutamente indispensável de todo engenheiro ou físico - além de navegadores e pilotos - até o surgimento das calculadoras eletrônicas na década de 1970.
JLS
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Nota 2: 
A Esfinge, figura maligna da Mitologia Grega, era representada como um leão alado com uma cabeça de mulher. Ela vivia perto de Tebas e, na narrativa de Édipo Rei, Sófocles conta que ela apresentava a todos que passavam por ali uma questão que se tornou a mais famosa da história, conhecida como o Enigma da Esfinge: "Decifra-me ou te devoro!  Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?" Segundo o autor ela matava todos que não respondiam e prometia deixar passar livre quem decifrasse o enigma. Édipo resolveu o quebra-cabeça respondendo: “É o homem. Engatinha quando é criança, anda sobre dois pés na idade adulta, e usa uma bengala quando é ancião”. A Esfinge ficou tão desapontada com a resposta de Édipo que jogou-se de um penhasco, morrendo. 
Blog
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15 comentários:

Gerson Mendes Correa disse...

Realmente a matemática é uma coisa que só gente como o Salvadoretti e eu para aprecia-la. Nós que somos chegados a essa enigmática senhora sentimos prazer em desvendar seus segredos seculares, seja em funções trigonométricas, diferencial, ou numa simples quatro operações, é uma sensação indescritível.

Manoel Ianzer disse...

Salvadoretti descreve muito bem esse período assustador, principalmente para quem não gostava de matemática como eu.

Sempre me foi obscuro e difícil compreender a matemática em sua essência. Quase fui devorado por
ela na Faculdade, ficava sempre
em DP (dependência), mas a muito custo passei finalmente.

"Sei que para os entendidos, ela justifica e deslumbra".

- Acho que me faltou capacidade e interesse em descobrir e desvendar OS SEUS MARAVILHOSOS SEGREDOS.

- Fico imaginando quanta beleza tem a MATEMÁTICA que deixei de aproveitar.

"PARABÉNS e minha admiração a Salvadoretti e Gerson que
fazem a diferença e os eleva ao topo dos números em igualdade de condições".

Ianzer

Gerson Mendes Correa disse...

Tchê Manoelito, não te desesperes por não teres desvendados os segredos da matemática, porque desvendastes e muito bem por sinal o dom da escrita, ou melhor de poder escrever com excelência o que tu sentes, coisa que para mim é um ponto inatingível. Diz o ditado que todo homem tem que ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, pois bem o dois primeiros quesitos eu consegui realizar, já o terceiro bem..., vou ficar devendo, e me parece assim que empatamos. Um baita kebra kostelas indio véio.

J.L. disse...

Gerson, concordo contigo... matemática é um amor estranho, às vezes muito difícil, mas fascinante e revelador. Embora hoje a use um pouco menos no dia-a-dia, não a esqueço - outro dia me vi discutindo com alguns bolsistas o "operador nabla"... lembra?...

Ianzer, o fato de eu e o Gerson termos essa estranha atração pela matemática com certeza não impediu que sofressemos muito com ela... é algo que para alguns deslumbra, para outros não, mas é sempre difícil para todos. E concordo com ele que talvez tivesse sido melhor ser aquinhoado com o dom da palavra, como você...

Gerson Mendes Correa disse...

Tchê JL, na verdade nem me lembrava mais desse nabla, mas uma pesquisa no google já me deixou ao par novamente. Mas vou te dizer uma coisa a matemática e igual as mulheres, nós nunca vamos saber manejar, porém se as entendermos fazemos qualquer coisa com elas. O que mais me impressionava quando era estudante é que não adianta decorar fórmulas, tem que entender os caminhos para chegar ao resultado certo, e outra coisa que me impressionava era a concentração que ficava no desenrolar dos exercícios a ponto de desligar-me do mundo exterior.

Hamilton Caio Vaz disse...

Um texto primoroso, detalhes muito bem apresentados, Salvadoretti, parabéns. Realmente aquela matemática do início do científico, ao mesmo tempo que assustava, também fascinava. E eu me lembro do primeiro dia de aula de matemática no científico, no início de março de 1962, quando a professora Sylvia Vaz da Silva (Sylvinha) indicou para nós o livro do Manoel Jairo Bezerra, e ela tinha o exemplar que usava em aula para mostrar o tamanho do tijolo. A matéria do primeiro dia, eu nunca esqueci, foi o conceito e a demonstração das fórmulas da progressão aritmética, e recordo de quando ela encheu o quadro, de alto a baixo, com a soma dos "n" termos da progressão. Aquilo já ficava esquisito - quem sabe até filosófico, somar termos que não apareciam no quadro, ficava apenas na imaginação.

Hamilton Caio Vaz disse...

Salvadoretti, sobre o assunto matemática e filosofia, andei conversando há poucos anos com uma prima formada em filosofia e cujo estudo a levou para o lado agnóstico. Eu falei que se ela estudasse física, onde a matemática também entraria como ferramenta, poderia mudar essa ideia da inexistência de um ser supremo criador. Por outro lado, entendo que ninguém será um bom físico ou matemático sem que tenha um conceito amplo de filosofia. Ao mesmo tempo, um filósofo seria completo se tivesse conhecimentos avançados de física e matemática. Aliás, assim o eram os grandes físicos e matemáticos do passado.
Ah, sim, é bom lembrar que tenho alguns compêndios de filosofia na biblioteca, junto com física, astronomia, astronáutica, aviação, gastronomia... Logicamente, sem nenhuma alusão ou pretensão de como ser um grande físico ou matemático, rsrsrs!

J.L. disse...

Gerson,
concordo inteiramente com tudo - é,como as mulheres, o negócio não é manejar, é compreender. Concordo mais ainda que o melhor jeito de odiar matemática - e nunca entendê-la - é decorar. Aliás, em qualquer área do conhecimento, a decoreba só dura até a prova, quando muito. Mas aprender o caminho é para sempre...

lucia disse...

Este livro me acompanhou por muito tempo, primeiro no Estadual e depois na FunBa sempre sob a coordenaçao da professora Marlene Morais. Muito penei sobre este livro tentando entender os enigmas que suas paginas guardava, e depois fui apresentada a outro, livro do mesmo autor chamado Geometria editado pelo MEC (FENAME). Este sim, foi um estudo prezeroso, pois a os claculos de areas e volumes me eram mais palpaveis e pude desenvolver melhor meus estudos matematicos...bons tempos aqueles...

J.L. disse...

Hamilton, obrigado!... desculpe a demora, mas o Blogger andou fora do ar nesses dias. De fato, naquele momento a reação era mesmo esse misto de fascínio e medo, como creio que sempre sentimos frente a algo desconhecido (dizem que o ser humano só teme duas coisas, o desconhecido e o ridículo...). Para alguns, por alguma razão, o fascínio vencia o medo, e a gente tentava devorar a Esfinge... ou, pelo menos, dar-lhe umas mordidas.

Sobre a relação matemática / filosofia, acho que é inegável. Há noções matemáticas que avançam muito mais fundo na filosofia, por mudarem radicalmente nossa visão do universo, do que o simples conceito de limite que citei - quem já arriscou alguns passos na Teoria da Relatividade, ou pensou na existência do bóson de Higgs que o diga...

Tua biblioteca só reforça o que penso: o conhecimento é uno e indivisível. E a gastronomia se encaixa perfeitamente nela: vide Epícuro... Já se a matemática guarda alguma relação com a existência de um princípio criador, cito apenas uma frase que ouvi há poucos dias de um antigo professor meu a esse respeito: "A inexistência de evidência não é, matematicamente, a evidência de inexistência"...

J.J. Oliveira Gonçalves disse...

Oi,Vaz!
Colegas de Estadual...
Preliminarmente, saudações bageenses!
Meus cumprimentos ao J.L., pela competência com que discorre sobre a matéria e pela clareza com que a expõe. Beleza de texto! Todavia, cumprimento-o, ainda, pela oportunidade que me deu - com certeza, a todos nós, seus conterrâneos e colegas - de voltarmos nos escaninhos da memória e degustarmos emocionadamente pretéritos bocadinhos da historinha de nós mesmos - individual e coletivamente. Infelizmente, (tão certo como 2+2= 4... rs...), não podemos voltar ao passado - assim como não podemos passar a vida a limpo - mas podemos, com certeza, medir o quanto andamos nessa Linha de Tempo e sorver, demorada e prazerosamente, aqueles momentos que calaram fundo em nossas Almas e se aninharam em nossos corações para sempre! Que esse Saudosismo sadio e amoroso seja legado para os que vierem depois de nós... E, se escrevo assim, é porque a espontânea narrativa do Salvadoretti me prendeu a atenção e provocou a inspiração! Além do que, os comentários aqui postados pelos colegas, também me encorajaram a dar um depoimento.
Pois, também carreguei esse livrão, naquelas épocas de Dourados dias... Carregá-lo era o de menos - mesmo para um camarada franzino, como eu... rs... O brabo mesmo era estudar, tentando entender a dita matéria e, assim, descobrir algum Segredo matemático... Quem sabe, desvelar algum Enigma mitológico... rs... Apesar de toda minha dificuldade em Matemática - que nunca foi segredo nem enigma para ninguém, principalmente para meus pais e professores... rs... - no mínimo, dois momentos belos e importantes o "Bezerrão" me proporcionou.
O primeiro foi quando, na primeira aula com a exigente e bem falante Professora Silvinha, ela apresentou o livrão à Turma 101, enfatizando conteúdos e tecendo loas ao Autor. A Professora falava com tanta convicção sobre as "elucubrações" matemáticas que até me animei um pouquinho... rs... Acho que, por escassos minutos, divaguei e pensei que não seria tão mais difícil que Análise Sintática... rs... Erro grosseiro de cálculo e... de tudo! Voltei a mim. E lhes confesso que pensei: "e agora, meu Deus?!" Bem, a Professora Silvinha viu minhas dificuldades com "Dona Matemática" e sempre me socorria de forma pacienciosa e fraterna. Felizmente, apesar dos pesares, nunca fui reprovado! Também, nunca mais esqueci de uma palavrinha compridinha e sonora - até bonita - mas que me soa feito bicho-papão: Trigonometria! Eta, coisa braba, tchê!!!
O segundo momento? Quando fui comprar o "Bezerrão", na livraria do seu Previtalli - pai do Naguinho, meu professor de Educação Física, figura humana que nunca esqueci pelo seu jeito otimista, entusiasta e fraterno de ser. Quando saí da livraria, senti-me orgulhoso em ter sob o braço um livrão daquela envergadura - ainda que o tal livro fosse de Matemática... rs...
Meus caros colegas, números gosto deles, sim, mas na Magia da Numerologia... rs... Atividade com a qual já trabalhei, (e creio que bem), em certa época da minha vida. Em Matemática, sou franco: sou uma negação... rs... Todavia, admiro muito e respeito quem se atreve e consegue andar de mãos dadas com essa "essa senhora carrancuda e complexa"... rs... (Meu caminho - na verdade - já era no andarilhar das Letras...)
Colegas e conterrâneos: foi um prazer ter estado, neste espaço importante e democrático, "conversando" espontânea e sinceramente com vocês!
Abração bem bageense!
JJ!

Manoel Ianzer disse...

Parabéns aos colegas J.L., J.J., Hamilton, Gerson e Vaz, pelos debates saudáveis e esclarecedores.
Essa interação entre os colegas do Estadual é que faz a diferença deste blog.
Blog que une e desperta o interesse e a vontade de voltar a um passado feliz de experiências vividas.
Matemáticamente falando: numa escola e numa cidade de muito carinho ao quadrado (Estadual/ Bagé).
Matemáticalizando: dentro de nós ao triplo - (mente/coração/amor) e diga-se a verdade, da nossa inquieta alma - brota SAUDADE!

J.J. Oliveira Gonçalves disse...

Olá, Ianzer...
Saúde!
Assino abaixo do que escreves.
Pois é o coração falando... E o coração fala em silêncio... E só revela ao exterior o Sentimento que deveras sente!
Para ti, e nossos fraternos colegas de Estadual, esta trovinha/repente:
"Eu nasci numa cidade
Que é a Rainha da Fronteira
Pra lembrá-la - esta Saudade
Vou senti-la a Vida inteira!" (JJ)
Abração bageense para todos!
JJ!

Manoel Ianzer disse...

J.J. para você.

Sou muito raíz,
terra, campo,
mato, cacimba,
banhado e cerro.

Bagé - atrai!
O gaúcho - canta!
A geada - enfeita!
O minuano - assovia!
O bageense - cria!
O visitante - gosta!

Sou muito pampa,
fronteira e
cidade.

Hamilton Caio Vaz disse...

Salvadoretti, foi bem lembrado o Bóson de Higgs nessa interação física-matemática-filosofia. Não é por acaso que se passou a chamá-lo de "partícula de Deus".
O grande mistério da natureza e, por conseguinte, da vida, parece levar em duas direções opostas: o infinitamente pequeno com o íntimo do átomo, e o infinitamente grande com o universo. De um lado as partículas subatômicas e de outro as galáxias, as nebulosas, os berçários de estrelas, os buracos negros..., parecem disputar de onde sairá o próximo passo em direção ao entendimento do mundo e da vida.
E assim como os planetas Netuno e Plutão (este, agora planeta-anão) antes da descoberta, foram previstos teoricamente pela física-matemática de Newton, também esse bóson, que por enquanto só tem existência em expressões matemáticas, está aguardando para ser resgatado do ainda misterioso interior de um núcleo atômico, e então poderá se revelar, ao mesmo tempo, como testemunha e participante da criação da matéria e do universo.
Reforçando o que também falaste, parece que uma base filosófica ajudou Galileu e Newton no entendimento do universo, e depois orientou Einstein, no início do século XX, a abrir o caminho da Relatividade.
E que início de século! O Avião e a Relatividade inaugurando a primeira década, e logo no seu rastro a aparição do Cometa de Halley, em 1910, com prenúncios de apocalipse pela ameaça de um gás venenoso que seria emitido. Um fim de mundo que poderia se consumar, sim, mas pela Primeira Guerra Mundial que estourou em 1914, o conflito que inaugurou a guerra química, mas aqui com gás produzido pela besta homem, e não pelo cometa.