9 de novembro de 2010

A fronteira invisível - VI, O mistério das alheiras


O mistério das alheiras (*)

José Doutel Coroado

Boa tarde, Dona Felisberta.

- Boa tarde. O mesmo de sempre?
Ainda eu não tinha acabado de me sentar, quando entram duas “senhorecas”, conversando animadamente.
- …e então ela chama-me para ir ver o fenómeno! Lá fui eu…
- Pois olha que eu era capaz de não ir!
- Pois… mas lá fui eu. Abriu a porta e não é que era verdade? Lá estavam as alheiras todas esparramadas no chão que até parecia uma estrumeira!
- Todas??
- Bem… todas, todas não, que quando olhei para as varas ainda vi umas duas dúzias penduradas… Uma aqui, outra acolá…
- Que estragação!
- Tanto trabalhinho tivemos! Um dia inteiro, meia dúzia de mulheres para encher quarenta dúzias e ver aquilo assim… Até me deu uma dor de alma!
- Mas… foi das tripas ou?
- Qual quê… quais tripas! Cá para mim, aquilo foi mau-olhado que lhe deitou a Joaquina, que ela nem lhe pode ver um farrapo novo. É cá uma invejosa! Rais parta a mulher!
- Ora… Ora! E tu achas que o mau-olhado agora deita as alheiras abaixo, é? Tás é maluquinha! Ora, vejam lá… Não me digas que a tua prima também acredita nessas patranhas?
- Pois olha que quando lhe disse que só podia ser servicinho de alguém que lhe queria mal, não é que ela chegou logo lá?? Olha que há gente capaz de tudo!!
- Eu nessas coisas não acredito! Isso é que era bom! Tás-me a ver a mim a acreditar que alguém pode deitar um mau-olhado e as alheiras a começarem a cair das varas? Tem mas é juízo!
- Pois é… não acreditas nessas coisas? Olha que estes olhos já viram muita coisa! Sabes quem é a bruxa da Carvalheira? O que é que lá terá ido fazer a Joaquina a semana passada?
Eu quando vou à bruxa é porque quero alguma coisa!
- E eu é que sei o que é lá vão fazer as pessoas? Olha… eu é que não vou lá! Nem a essa nem a outra qualquer! Vade retro…
A Dona Felisberta, que estava a lavar uma chávenas, virou-se para elas.
- Eu estou como diz o galego: Não acredito em bruxas… pero que las hay, hay!
- Tás a ver? Até aqui a Dona Felisberta sabe que há destas coisas.
- Vá… vá! Não me meta nessa alhada que eu não quero confusão com ninguém. Olhe… Já agora, se mal pergunto… E só caíram as alheiras? A sua prima não fez chouriças pretas?
- Que é quer dizer?
- Oh, mulher de Deus! As chouriças de sangue! Os palaios!
- Pois, olhe que fala bem! Realmente… eu não vi nenhuma no chão!
- Oh, Diabo! Esse serviço é poderoso! Capaz de fazer deitar abaixo as alheiras e deixar escapar o resto, é obra!!
- Eu não te dizia?! Às tantas foi das tripas…
- Pois… poderá ser! Mas a mim ninguém me tira da cabeça que a Joaquina é má rês. Rais partam a mulher!!
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Enviado por
José Doutel Coroado
Vilarandelo, Valpaços, Portugal
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(*) Nota: Na postagem do dia 30 de agosto de 2010, “Um baú no pampa - V, A rotina da casa”, travou-se uma bela conversa nos “Comentários” sobre as butifarras e as alheiras... faltaram maiores informações sobre as alheiras. O autor deste texto, sem saber, nos ajuda um pouco mais, enviando inclusive - além do texto, uma bela fotografia. Mas, não seria demais pedir ao José Doutel mais detalhes sobre essa iguaria chamada “Alheiras”. O que vocês acham?
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6 comentários:

Hamilton Caio disse...

Uma beleza de texto ! Escrito no estilo lusitano, basta lermos usando o sotaque de Portugal, e em voz alta, e teremos uma bela prosa transformada em poesia. E vejam bem: de alguns termos ainda me lembro do tempo de criança, e que foram caindo em desuso pelo efeito da globalização na lingua, como chouriço (chouriça para os portugueses) e chávena. Parabéns, José Doutel ! E como já sugeriu o Vaz, caíam bem mais detalhes sobre as "alheiras" !

Gerson Mendes Corrêa disse...

É isso aih ó gajo, explique melhor esse negocio que chamas de "alheiras", pois se é de comer me interessa, e muito.

Anônimo disse...

Xará Gerson

Vou me meter, como filho de dono de restaurante posso me considerar quase como um estudioso, principalmente como provador de beira de fogão.
Para te deixar bem à par, é como se fosse um salsichão de frango, feito como se fosse uma linguiça, bem temperado, e depois dependurado para defumação, muito bom.
Abraço
Gerson Oliveira

José Doutel Coroado disse...

Caros Comentadores,
grato pela honra que me deram de colocar este pequeno conto no vosso muito interessante blogue. Enquanto preparo uma resposta completa às vossas dúvidas, sugiro que vejam este post no meu blogue:
http://vilarandelo-umdiaumaimagem.blogspot.com/2010/01/dia-das-alheiras.html

abs

Luiz Carlos Vaz disse...

Vejam só, tudo começou com a provocação do "Guasque" Gerson sobre as butifarras, dizendo que as "alheiras" eram até mais saborosas... O Dr. del Rey, de Montevideo, nos ajudou com as butifarras, e agora o Doutel, d'além mar, nos salva com as alheiras de Vilarandelo... o outro Gerson, o de Curitiba, interessadíssimo, Doutel, vai esperar as receitas... mas que história essa das Alheiras, hein? Atravessamos o Atlântico atrás delas...

Gerson disse...

O meu Xará ja deu uma explicação saborosa sobre o assundo, e te falo que achei interantíssimo, de repente até aprendo a nadar para ir até dalém mar a nado só para come-las.