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Vaga
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Marcelo Freda Soares
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Acordei cedo como de tivesse compromisso. Há muito tento enganar a semana evitando trabalhar na segunda pela manhã, porém, o condicionamento de anos mais o implacável relógio biológico me arrastam das cobertas. Portanto, mesmo que não queira, hoje é segunda-feira. Sacudo da cama todas angústias que, diferente do sebo na noite, não saem com um banho quente nem se renovam com um perfume novo. Então tenho duas alternativas: mergulhar em tarefas que se assemelhem a trabalho ou tentar iludir o calendário com atitudes domingueiras que empurrem para um pouco mais a rotina consagrada.
Faz uns dias que resolvi tomar o primeiro café fora de casa, antes pelas padarias mais próximas mas também, quando possível - e se houver pernas e disponibilidade- em algum ponto mais distante. As caminhadas adotei há muito, sozinho mas equipado: uma máquina fotográfica para registrar o entorno e um tocador de música para me abstrair do mesmo. Nada mais nos bolsos e nas mãos.
Então, hoje, que é segunda-feira, chego cedo ao Café Aquário, nem tanto como para alguns desocupados ou aposentados, que até por isso, não se importam com relógios. Nas mesas a frente um colega que, este sim, deveria estar no batente, discutindo o resultado do jogo de ontem; um conhecido alfaiate que comemora cem anos na mesma cadeira; alguns outros sexagenários lembrando de perdidas vantagens; e distribuído, entre a maioria dos clientes, a comum leitura do velho jornal da cidade, sem muitas novidades. Eu preferi um livro, um peso a mais para o resto do trajeto mas que cai apropriado para compor o clima de transgressão e efemeridade - "Jazz - de André Francis" que mesmo pelas letras envolve a imaginação com um ambiente de musicalidade. Quase viajo com a taça de café -com-leite fumegante e o pão prensado com presunto e queijo - aroma e paladares adequados-, mas só até ouvir algo que me desperte vindo do vizinho do lado:
"Moça quero uma recheada completa com o pão bem apertado, o queijo escorrendo leve por fora, pouca manteiga e cortado em apenas dois pedaços".
Era o que faltava para completar o quadro, e para não perder o prazer do inusitado, sigo registrando na memória, somente até aqui os fatos.
Partindo pelas ruas calmas, ainda nem bem despertas, escuto no mp3: MPB4, e busco pelas quadras quase vazias: gente, para fazer, pelo menos uma fotografia. Nada que me signifique, nada para ilustrar a fuga com pretensa arte, mas algo para associar da manhã a conquista sobre o reprisado. Então dou de cara com esta imagem, pronta, simples e pela vida elaborada; um pouco de mim se não tivesse despertado, caso tivesse esperado, caso não tentasse ir além e tentar fugir da rotina para enfrentar...mais uma segunda-feira.
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Marcelo Freda Soares
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Publicado em Diário do Morsa
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27 comentários:
Quer dizer que o mesmo Camafunga que faz aquelas fotos maravilhosas também escreve deste jeito? Parabéns pelo talento.
Sim, Maria Cristina, e nas "horas vagas", ainda trabalha como médico...
Uma bela foto junto a um texto impressionante! Será que esse talento é herdado?
Luizamigo
Grandíssimo texto! Magnífica prosa e excelente ilustração. Um verdadeiro Homem dos vinte e sete ofícios e mais.
Estou deslumbrado com o Doutor Marcelo Freda Soares. E vou tentar ler mais alguma coisa dele; se quiseres ajudar-me... mando-te um queijo picante de Torre de Moncorvo.
E quanto à Livraria Bertrand é mesmo bué da fixe!!!!!
Qjs e abçs para toda a família (convenientemente distribuídos) e um forte para tu
Ferreiramigo, vou te deixar o endereço do Blog do Marcelo para passares por lá: http://blogdamorsa.blogspot.com/
Um abraço daqui, do lado de cá! Vaz
Olha, Maribel, acho que é coisa de família...
Acompanho os escritos do Marcelo há muito tempo, antes mesmo das fotografias. São textos de conteúdo humano, muito bem elaborados, pictóricos como seus retratos, num fluxo todo pessoal, quase uma "proesia", que as vezes exigem mais de uma leitura, mas que revelam sempre novos e interessantes sentidos. A meu pedido ele deve estar republicando um dos meus favoritos: Química.
Bem, Juca, vamos "exigir" que seja acompanhado de uma bela fotografia... dose dupla. Grato por passar aqui e comentar. Apareça sempre...
Vou agradecer aqui pelos exagerados comentários, a pedido do Juca ontem republiquei Química, mas sem foto :)
Descobri que este Marcelo é sobrinho do Deogar Soares, esta explicado a pluralidade de talentos.
... e é filho do jornalista João Felix, que este ano lança seu segundo livro, "Na palma da mão - contos do Sul". Mas, omo ninguém faz filho sozinho, é bom dizer que a mãe é a professora Maria Helena, daí...
Devo dizer, também, que as palavras do Marcelo/Camafunga, são como os melhores vinhos que estou conhecendo aqui em Portugal. Não cabem adjetivações... Mas que embalam, embalam...
Oi Lucia, prova um Monte Velho, que tomei no Solar dos Bicos, aí em Junho.
Já tomei Vaz. De fato é maravilhoso!!!Sem precedentes. abs
Lúcia, se fores a Lisboa, visita o nosso Ferreiramigo, (Henrique Antunes Ferreira - e sua Raquel), do blog "A minha travessa do Ferreira", pessoas finíssimas e amabilíssimas. No blog tem o mail dele, diz que também és da "Gang de Bagé", ele vai entender.
Saber que a Lúcia também foi do Colégio Carlos Kluwe foi uma surpresa, pelas amostras se conclui que esta escola só deu bons frutos. Ela que gosta disso: parece haver. nesta publicação, uma conspiração cósmica - escola, Portugal, vinhos, queijos e memórias, e que bom que eu estava no centro disso.
Conspirações cósmicas estão ai, com sempre estiveram, basta que as saibamos ler.
Esse Blog, Lucia e Marcelo, é capaz de coisas incríveis, como essas... apareçam sempre por aqui.
Já que este blog é capaz de "parir" coisa incríveis, envio um presente para seus andantes... Espero que gostem!
http://www.youtube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ&feature=player_embedded#!
Esse Galeano é foda, para não dizer um palavrão... Bravo!
Sabia que ias gostar Vaz! Recomendo aos demais. Estou encantada com o teu blog... E pensar que fui descobri-lo aqui do outro lado... O Chronos deu cedeu lugar ao Kairos... E, assim, pela mão do Marcelo te re-encontro falando do "meu" amado Colégio bageense. Gracias a la vida!!! Combinado sobre a conversa na Radio ou fora da rádio.
Olá, Vaz, Marcelo e todos(as) comentaristas deste "post"...
Venho lendo - e degustando - os comentários sobre texto e autor. E, hoje, embora tenha o sábado passado mas nos deixado este domingo, aqui, em Porto Alegre, morno e ensolarado, (já prenunciando a chuva de amanhã), com sabiás cantando em meu quintal, coube-me fazer o comentário nº 22. (Embora tenha sofrido muito nas mãos de Dona Matemática, amo os números em Numerologia e me dizem muito os chamados "números-mestres... rs...) Todavia, me basta assinar abaixo dos elogios e do reconhecimento sobre o texto que não é belo: é belíssimo! A impressão que me dá é de que o Marcelo está falando conosco, nos contando, (descontraidamente), sobre esse momentos, enfim, "batendo um papo" sobre tais acontecimentos, ao final do qual passamos interagir com ele, dando-lhe nossa opinião. Há, na narrativa, espontaneidade, clareza e maestria - condimentos indispensáveis no desenvolto manejo da palavra! Ah, a foto? Mostra esse lado por demais doído que se dissemina pelo nosso Brasil... E nem nosso "Garrão Gaúcho" escapa dessa realidade profundamente lamentável do cotidiano perverso e desigual!
Parabéns, autor! Parabéns, comentaristas! Parabéns, Vaz, que, através deste "Blog" dedicado ao nosso Estadual e à nossa Bagé, nos proporcionas estes momentos singulares de reencontros e de trocas afloradas de gentis reminiscências!
Abraços fraternais, minha gente!
JJ!
... e hoje, saiu dele, o Química.
O JJ é outro que precisa publicar um livro ilustrado com fotografias dessa nossa turma que publicamos aqui no Blog. Material o JJ tem de sobra, precisamos pensar numa edição bem trabalhada, que dizes, JJ?
Tchê Vaz...
"Tava" passando por aqui, a tranquito, no más, e "dô de cara" com tua pergunta, rapaz... rs...
Pois, concordo plenamente, Vaz! E como dizes: uma edição bem trabalhada... E eu completo: vai ficar beleza"! Mas, o livro de que estou falando, aqui, seria uma publicação do pessoal do "Blog", Vaz! Tem tanta memória aqui dentro. Tanta história. Tanta lembrança. Tanta saudade. Tanto suspiro, enfim, tanta coisa bonita e valiosa, tanto testemunho de época... Tal publicação seria, assim, retalhos, fragmentos de nós mesmos trazidos a público através de uma bem cuidada (e pioneira?) publicação. E já me vem uma série de outras idéias... Uma delas seria que o "Velha Guarda do Estadual - Reminiscências..." fosse lançado em Bagé e pudesse contar, pelo menos, com algum "aditivo" financeiro da Prefeitura e de empresários bageenses e fosse um evento marcante - numa livararia, por exemplo, ou num café, ou num espaço público cultural... Seria uma anotologia com textos, fotos, traços e pinturas do pessoal, aqui, do "Blog".
Bem, quanto a um livro meu, solo, ilustrado pelos nossos artistas-fotógrafos, me sentiria honrado - com certeza! Claro, eu teria que ter uma idéia dos custos, ou seja: de quanto gastaria e como pagaria.
Ficamos assim, por enquanto, pois... Idéia lançada: idéia multiplicada - é o que penso. Vê que tua idéia/sugestão "puxou" outras.
Abraço,
JJ!
Que texto lindo e bem escrito.
Oi Clarisse, obrigado por comentar aqui, apareça sempre!
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