22 de dezembro de 2021

The Man Who Shot Liberty Valance – ou… A história de Abel

 

                                                                        Foto Alfonso Montone


Luiz Carlos Vaz (*)

    Neste dia 18 de dezembro participei de mais uma sessão de autógrafos. A segunda como autor de livro. A minha segunda vez que, do outro lado da mesa, me diverti perguntando: Para quem autografo este? Teu nome é com esse ou com zê? Essas coisas que acontecem com nossos nomes e sobrenomes brasileiros que possuem alguma coisa além do lusitano, chegando ao ponto de, em algumas situações, quase pedir para soletrarem. Decorei alguns complicados, como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, Arnold Schwarzenegger… vá que, né?… nunca se sabe!

    Os livros possuem um encanto; possuem o feitiço de juntar pessoas, e faziam isso com poder e sedução, como verdadeiras sereias, durante nossas Feiras do Livro de Pelotas. E nós, pobres Odisseus, sem um mísero mastro para nos atar… Mas, não temos a nossa Feira há dois anos. Por isso o evento Movida Schlee, que o Alfredo Aquino, de Edições Ardotempo, inventou, criou, custeou e conseguiu executar em homenagem à memória do nosso Escritor, foi uma lembrança para todos nós de como era bom encontrar pessoas e livros, todos os anos, ali na Praça!

    Foram sete autores, com quase vinte títulos, entre eles vários lançamentos, que autografaram ali no pátio do Mercado. Pela tardinha, músicos interpretaram diversas canções, algumas em homenagem ao Schlee, e outras sobre personagens da obra dele. Foi uma festa cultural!

    Tive a ideia de decorar meu cantinho na mesa com alguns objetos que me são caros. Um deles foi um Porta Lápis de Cor, com a figura de Pinocchio. Aprendi com nosso homenageado que sempre dizia, principalmente falando a estudantes, que: “Um escritor é um grande mentiroso!” E completava: “Não existe essa bobagem de inspiração! Ele precisa ter, isso sim, memória e imaginação; vontade e disposição para escrever”! Daí coloquei ao lado do Pinocchio uma caneca que uso aqui como porta lápis, (enquanto me divirto com minhas memórias e imagino algumas coisas) que tem, pintada à mão, uma frase do Gabo que é definitiva para mim: “La vida no és la que uno vivió, sino la que recuerda y como recuerda para contarla”. Uma pequena máquina de datilografia, onde escrevi o livro, ostenta ali a primeira página com o título do livro. Olhem bem...

    E lembrei também da frase do diretor do Shinbone Star, Mr. Dutton Peabody, no filme The man who shot Liberty Valance, um dos filmes preferidos do Schlee e que foi apresentado no IJSLN, no projeto do professor Luiz Rubira, Os filmes de AGS:

Quando a lenda é maior que o fato, conte-se a lenda!”

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Nota: O meu livro – A história de Abel, está sendo entregue por mim, num trenó preto, em toda cidade. Para quem reside em outra localidade, o Correio entrega sem custo de remessa. Tenho maquininha e essa novidade para mim que chamam de pix. Eu, hein? um guri lá da Hulha, já tenho até piquis...

(*) Luiz Carlos Vaz, é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog. Publicou recentemente o livro de memórias familiares e crônicas A história de Abel


10 de dezembro de 2021

A MARCA DO SCHLEE

 

José Hillal, Guilherme Schuch, L.C. Vaz e João Manoel, no Central Café

Guilherme Schuch (*)

    São tempos difíceis para quem vive aqui, debaixo do firmamento. Guerras virtuais, presenciais, reais, algumas surreais. Notícias falsas que preferiríamos que fossem verdadeiras, notícias verdadeiras que preferiríamos que fossem falsas. O pronome mais usado para conjugar os verbos é o eu, depois o nós e – só então – os demais.

    Neste mar de sufoco contra o viver leve, uma voz sempre foi como um pulmão antienvelhecimento da alma: Aldyr Garcia Schlee. O escritor, o desenhista, o professor, o jornalista, o tradutor – dizem agora os jornais. O contador de histórias e amante do futebol e do cinema – dizemos nós, seus leitores.

    Aquele que, tão lúcido e com tão apurada visão para as nuances da existência, sabiamente desde sempre fez-se de louco e cego para a linha imaginária que insistiam em colocar bem no meio do seu país. A “Linha divisória” existe nos mapas, mas nunca existiu em seu coração fronteiriço. Sempre foi tudo “Uma terra só”.

    Por não conhecer os “Limites do Impossível”, desde sempre aventurou-se. E como era bom escutá-lo contando as tantas histórias com a caligrafia tão bonita pela qual escreveu sua vida. Amante da Celeste, foi o criador da Canarinho. Por isto, morou no Rio de Janeiro, mas viver, mesmo, sempre viveu na Fronteira. Aliás, é tão mais bonito viver na Fronteira, rodeado do que há de melhor na humanidade: a diversidade.

O último autógrafo de Schlee em sua terra natal,
em 26 de setembro de 2018


    Contou sobre o Papa, sobre Rivera, sobre a origem de Gardel. Chegou mesmo a deixar a própria História com inveja por algumas vezes não ter acontecido exatamente como escreveu sua caneta.

    Sobre suas paixões, não poupou palavras e jamais tolheu a imaginação: com seu Contos de Futebol, humanizou de tal forma esse esporte que, se fosse tomado como base pelas pessoas que hoje o comandam, não haveria sequer um estádio vazio ao redor do planeta. Nas Fitas de Cinema, tomou parte nos filmes de forma a impedir que o leitor fizesse a distinção sobre o que era o cenário montado pelo roteirista, o que era montado por ele, Schlee, e o que era montado na cabeça de quem participa devorando a obra. E quem teve o prazer de vê-lo comentando os filmes e sua própria imaginação na Casa do Capitão (este, seu íntimo amigo) sabe bem do que falo.

    Tomou-me uma profunda tristeza ontem quando o Vaz mandou uma mensagem clara, sucinta: “Morreu o nosso Escritor.”. Pronto. Não havia mais palavra a ser dita.

    Que em paz descanses, meu querido amigo de noites sempre imaginadas e nunca vividas. Vá ouvir pessoalmente as histórias do Capitão, os poemas do Lobo da Costa, os contos do Galeano. Eles certamente estão esperando para ouvir os teus. E muito obrigado por todos esses quase 84 anos de ensinamentos e pela vasta obra que deixaste. Com ela será mais fácil continuar tocando os dias nestes tempos tão difíceis para quem vive aqui, debaixo do firmamento.

Escrito em 16 de novembro de 2018

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(*) Guilherme Schuch é "Um sonhador nascido em Pelotas, criado entre a Princesa do Sul e o 3º Subdistrito do Arroio Grande e atualmente morando, trabalhando e amando no Rio Grande. Administrador de formação é pretenso poeta de noites insones." 



3 de novembro de 2021

Nomofobia

 

                                                                                             Foto L.C.Vaz


Arthur Felippe Vaz (*)

    Os avanços tecnológicos em nossa sociedade têm tornado cada vez mais fácil o acesso a telefones celulares. Atualmente, é muito raro encontrar alguém que não possua um aparelho como esse que é extremamente útil e ao mesmo tempo tão viciante.

    Com o passar do tempo, percebemos que a utilização do aparelho acaba se tornando um vício prejudicial a nossa vida quando gastamos horas do nosso cotidiano apenas em redes sociais, vendo fotos e assistindo vídeos, enquanto deveríamos realizar tarefas diárias importantes.

    Embora os aparelhos eletrônicos sejam extremamente úteis em nossa vida, como por exemplo, quando precisamos conversar com parentes que estão distantes, ou no momento em que chamamos um motorista para nos levar de um lugar ao outro, eles acabam sendo extremamente viciantes, de uma forma que não podemos viver sem eles.

    Naturalmente, acabar com a nomofobia não é fácil e exige muitas mudanças comportamentais, contudo tomar atitudes simples como limitar o tempo nas redes sociais, praticar esportes, passear com animais de estimação e meditar contribuem para passar menos tempo no celular e na internet.

    Professores devem limitar o uso de celulares nas escolas da mesma maneira que pais devem estimular seus filhos a passar menos tempo na tela e incentivar atividades educativas que possam contribuir para sua saúde física e mental.

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(*) Arthur Felippe Vaz nasceu no início do século XXI e é aluno da 1ª série do Ensino Médio.

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Nomofobia é um termo que descreve o medo de ficar sem contato com o celular, palavra derivada da expressão inglesa no mobile phone phobia.

28 de outubro de 2021

Samba do Covid Doido

 

                                                   Foto Luiz Carlos Vaz

Com a devida licença de Stanislaw Ponte Preta,

o Sergio Porto,  para os íntimos.

 

Luiz Carlos Vaz (*)

Para homenagear, quem sabe, as mais de seiscentas mil vítimas da Covid19, eis que o Governador anuncia em coletiva de imprensa a assinatura de um decreto obrigando a volta às aulas, de forma presencial, em todas as escolas do RS.

No mesmo dia em que volta a dobrar o número de vítimas, passando de 200 para 400 casos diários (sim, os casos fatais que já foram de 5.000 por dia, baixaram, mas agora voltaram a subir!), ficamos sabendo que as salas de aula, onde atualmente uma média de oito a dez alunos comparece presencialmente (cujos pais precisam assinar um calhamaço de folhas se responsabilizando por essa decisão - a de mandar os filhos à aula presencial, e as possíveis consequências dessa opção) passarão a abrigar de 30 a 35 alunos... claro, todos usando camisinha, digo, máscara, álcool gel... mas SEM o devido distanciamento social... Eles ficarão de segunda à sexta, mais de 4 horas lado a lado, mão com mão, nariz com nariz, boca com boca, protegidos por um equipamento que deverá (?) ser trocado a cada duas horas.

Quando Pelotas é destacada e notificada pelo Comitê de Crise pelo aumento de casos, essa é a decisão do Governador! (*)

Mas por que isso? Porque um órgão privado fez um estudo mostrando que as crianças e os adolescentes estão com necessidade de convívio social diário! E estão tendo prejuízos na sua “formação psicológica e acadêmica”. Não conheço a metodologia e nem outros detalhes científicos do trabalho. É tipo... “Engole esse comprido, já! E mostra a língua!”

Então, de acordo com esse estudo, os pais devem jogá-los às feras! Jogá-los na arena onde o vírus da Pandemia Covid19 os aguarda. Batatinha frita... um, dois, três!

Aos 45 minutos do segundo tempo, faltando um mês para encerrar o ano letivo, salvaremos esta geração de crianças amontoando-os em uma sala onde OS VENTILADORES OU CONDICIONADORES DE AR NÃO PODEM SER LIGADOS! Salvaremos sua psiquê, mas além das máscaras, creio que devam levar CAMISETAS E UNIFORMES para serem trocados, também, a cada duas horas.  

Como é fácil governar, decidir, sem conhecer, sem visitar uma sala de aula sequer! E no caso das escolas públicas, salas de aula cuja existência e manutenção estão sob a responsabilidade do próprio Estado! Batatinha frita... um, dois, três!

Como a Vida está valendo pouco! Não buscaremos, como se faz na medicina, uma segunda ou terceira opinião?

Só faltou o Governador dizer, como Winston Churchill, às vésperas da Inglaterra entrar de vez na segunda guerra mundial: “Nada tenho a lhes oferecer, senão sangue, suor e lágrimas!” Mas, pela ordem: suor de alunos e professores dentro das salas de aula sem ventilador; sangue daqueles que porventura vierem a morrer; e as lágrimas, ah! as lágrimas... as lágrimas serão daquelas que choram eternamente a morte dos seus filhos, dos seus professores, dos seus amigos... as Mães!

Escolham sua frase:

Batatinha frita... um, dois, três!

Que os jogos comecem!

Ave Caesar, morituri te salutant!

A minha é: NÃO vou ligar o botão do Foda-se!

Por isso lembro a última frase de Prometeu, gritada por Paulo Autran no final da peça Liberdade Liberdade: “Resisto! Resisto!”

 

(*) Veja os detalhes do Comitê de Crise na página do Governo do RS, acessando aqui:

https://estado.rs.gov.br/estado-emite-aviso-para-a-regiao-covid-de-pelotas

Considerando os pontos referidos, nos termos do Decreto n. 55.882, de 15 de maio de 2021, em face da análise das informações estratégicas em saúde, tendência de piora na situação epidemiológica que demanda a atenção no âmbito da Região COVID-19, se faz necessária a emissão de AVISO para que a região adote providências com medidas adequadas para a preservação da saúde pública, de forma a reduzir a velocidade de propagação, incluindo ações tais como, mas não só: reforço nas campanhas de comunicação local com orientação sobre uso orientação correto de máscara, distanciamento e ventilação; orientação da vigilância em saúde para que estabelecimentos realizem busca ativa de funcionários com sintomas de síndrome gripal e encaminhamento de casos suspeitos para testagem adequada; ampliação da disponibilidade e de locais de testagem; orientação da vigilância em saúde para que estabelecimentos e a população em geral garantam e respeitem o isolamento dos suspeitos e confirmados, manutenção da vacinação com fortalecimento da completude do esquema vacinal (incluindo a busca ativa de cidadãos e reforço da comunicação para aplicação da segunda dose), além de forte ação de fiscalização não só de aglomerações, mas também do cumprimento dos protocolos mínimos obrigatórios, especialmente de lotação dos estabelecimentos, em diálogo com a população e o empresariado local.

Encaminhe-se cópia do presente para o Comitê Regional da Região Covid-19, bem como ao Gabinete de Crise para ciência.

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(*) Luiz Carlos Vaz é jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

18 de outubro de 2021

Um dia em Rio Branco (Século XX)

                                                                  Fotos e Arquivo de Jorge Passos


Jorge Passos (*)


Amanheceu. Da quinta vem o ruído da enxada limpando o pasto na volta dos morangos. São poucos, mas bem cuidados. O terreiro das galinhas já foi varrido e os ovos das poedeiras colhidos. Ouço o trotezito do carro de la panaderia Los Claveles entregando o pão recém saído do forno. Rio Branco vai acordando. Tomo café para ir ao Colégio das Freiras e o pai me avisa que a Rural não pegou. "Sobe lá na Aduana e vê se não tem algum marinero, o Medina ou o Borges, pra me ajudar a dar uma empurrada."

Subo pelas escadinhas da ponte onde já se vê a correria com o Carromotor chegando. Passou pela estação Presidente Getúlio Vargas, Poblao de Vargas como se dice por acá. Vem apinhado.

No meio da ponte já está se aninhando na calçada o Nego Véio vendedor de bananas. Ele larga as bananas ali no chão e os passantes, com suas maletas de garupa sobre os braços que vão comprar açúcar, yerba, rapadura y otras cositas más no Armazém Oscar Amaro em Jaguarão, já vão adquirindo una penca que vai ser derrubada de uma sentada ali na sombra dos arcos da ponte.

Do outro lado, também de um trem, este, um Maria Fumaça que veio de Rio Grande e passou pela estação Basílio, vai descendo o pessoal cruzando a Mauá destino à Casa Azpiroz, Tienda Machado, Casa de las Lanas, Casa Simon, Casa Martinez, el Almacen del basco don Amado e outros comercios chicos que vendem de tudo que é bom do Uruguay: lanas, cobertores, telas balmoral, casacos de burma, quesos, dulce de leche, aceite y galletas Maestro Cubano, aquelas que vem nuns latões grandes que depois é bom de guardar os mantimentos em casa.  Algum desses viajantes até pensa em passar uns dias na fronteira hospedados ali no Hotel Italiano, comer una buena parrilla no Oásis acompanhado por una Norteña e quem sabe dar un paseo de bolanta por la Cuchilla, visitar os parentes que aqui ficaram e curtir la sesion de sabado nel cine Rio Branco, que en la cartelera anuncia la pelicula de guerra "Los Cañones de Navarone". Imperdible!

O velho, depois de me dar uma carona na rural até o colégio, já está na loja. Às vezes, quando tem muito movimento, como parece ser hoje, até almoça por lá. De tarde, depois dos temas feitos, também vou pra loja, ajudo com algum pacote, cevo o mate, mesmo pra algum cliente que puxa conversa, e me entretenho,  por entre o burburinho das mulheres , que essas são mais falantes, experimentando roupas, o rec rec rec das tesouras cortando telas, as negaceadas murmuradas da balconista Muñeca dizendo pra minha mãe: "Esa, baja todo y no compra nada."

Volta e meia, uma vez por mês, no começo da temporada, aparece algum viajante de Montevideo com sua mala cheia de novidades que vai abrindo e mostrando pro Velho. "Ney, eso se va a vender mucho este año", dizia o vendedor, enquanto eu e minha irmã menor ficávamos encantados ali na volta, só mirando porque não se podia falar, admirando aquele mascate fumando cachimbo com relógio de corrente de ouro e mostrando as mais lindas mercadorias da Capital del País y que a los brasileños les iba a gustar mucho.

Depois, já à tardinha, sentado num dos degraus da loja, ficava só  observando tranquilo aquele mundo de gente percorrendo a rua central do Rio Branco, num ir e vir, no  fervor de consumo,   a esperar a passagem  das gurias que saem do liceo.

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Jorge Passos
é um amigo de Jaguarão. Entra tantas coisas que ele faz, digo é fotógrafo, ciclista e apaixonado pelas água do seu Rio, onde nada, rema e navega... Um legítimo fronteiriço. Parte de sua história está narrada no curta metragem Casa de Rio, que concorre a vários prêmios ainda este ano.


9 de outubro de 2021

O Piratini Profundo, onde encontrei Xanadu

                                              Dona Claudete - Foto Luiz Carlos Vaz

 

Luiz Carlos Vaz (*)

A semana havia terminado ruim. Uma soma de coisas, umas sobre as outras, e eu envolvido em assuntos que não me diziam respeito... Pensava: eu não mereço isso! Mas, quem sou eu para saber o que eu mereço ou não mereço nesta vida?

É domingo, e pelo calendário lógico, não é o “fim da semana”, é o primeiro dia de uma nova semana. Chega uma mensagem da Suzana que me cobra uma conversa para tratar de vários projetos em andamento, coisas para fazer depois que tudo isso passar. E ela me convoca para ir até o Piratini Profundo! Sim, esse é o nome do lugar para onde ela vai seguidamente, para descansar, relaxar ou - nesses tempos atuais, fugir da Pandemia. Brincamos sempre com isso, principalmente quando não encontro a minha amiga de muitos anos aqui pela volta. A amiga de mesa de café, de conversas sobre arte, divagações sobre a vida ou bate-papos sobre as coisas simples do dia a dia, e também sobre a saudade que temos em comum da cidade que é puro amoR, e que nos encanta.

Quando ela some, já sei. Foi para o Piratini Profundo! Se não está no café, nas aulas de cerâmica, no pilates, não foi ao cinema, não foi batucar com a turma dos tambores... logo chega a notícia: Fui ao Piratini Profundo, ela dirá em mensagem ao nosso Grupo do Café.

Então resolvo atender seu chamamento e marco a minha ida para quarta-feira; mas será nesta quarta-feira e bem cedo, para “pegar” o café da manhã. E vou.

Depois de chegar, depois de um abraço que rascunha o fim de uma saudade imensa desde o início da quarentena, e depois do café com o omelete ao estilo da Vó Ida... saímos a caminhar pisando num chão repleto de primaveras.

Eu caminho ali pela primeira vez. Ela, que já anda por ali há décadas, me conduz como se fosse também a sua primeira vez. “Há coisas que são sempre novas”, ela me diz; “há flores que vejo pela primeira vez, e contemplo tudo como novo, pois tudo, a cada dia, aqui se faz novo”, completa.

Enchemos os pulmões de ar, com aquele ar que só existe ali, o ar da mata do Piratini Profundo. É um ar terapêutico, é pura energia. Contemplamos cada espécie naquela mata. Não conseguimos, claro, vislumbrar tudo. Enxergamos somente aquelas que os olhos permitem. Mas sentimos tantas outras que só podem ser vistas com os olhos fechados. Compreendemos que a árvore mais alta não é melhor que a milimétrica grama; elas interagem, formam um conjunto especial, que os especialistas chamam de bioma. E dessa forma, desde que existem, aquelas plantas se comportam para sobreviver, permanecer e para ser, a seu tempo, substituídas por outras da mesma espécie que esperam o momento exato para crescer.

Fotografo tudo que posso. Um pequeno ramo seco que serve de anteparo para uma minúscula aranha tecer sua teia; ou uma pequena flor que se abre para fornecer pólen para uma abelha, e que graças a isso, será fecundada... Há ali um mundo, um pequeno mundo harmônico, um mundo inteiro dentro do Piratini Profundo.

A quarentena nos trancou em casa, aproveitamos para caminhar como não fazíamos há muito tempo. E nessa caminhada há repechos, ladeiras, pedras, espinhos, galhos, e flores. Muitas flores, de todas as cores, tons e perfumes. E caminhos que se abrem, sempre novos, inéditos, únicos.

Voltamos por outro lado do mato, e nos acercamos da morada. Numa outra casa, que fica lindeira, está uma mulher; e já é perto do meio dia... Ela toma seu mate, solita, pegando um solzinho aconchegante. Não faz mais o frio de poucos graus quando ainda era cedo daquela manhã de primavera. Digo para a Suzana: Preciso fotografar essa senhora, mas só se ela permitir, pois não quero parecer um intruso. E ela me diz: Sem problema, ela gosta que batam fotografias dela...

Nos aproximamos, sou  apresentado para Dona Claudete. Nosso cumprimento é com um moderno toquezinho de mão fechada. Agora é assim, né? A gente se cumprimenta sem apertar as mãos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos. E percebo que não é “só um sorriso”, é um verdadeiro discurso de apresentação! Tudo que ela é está ali, de modo simples e verdadeiro, frente a mim.

Ela sequer passa a mão nos cabelos ou ajeita a blusa para a fotografia. E continua mateando... É Dona Claudete que está ali, no visor da minha câmera, inteira, simples, humana. Sua aura toma conta dos meus olhos e ela continua falando sem dizer uma só palavra. Naquele momento ela é a árvore de dez metros de altura, e eu sou a mísera graminha rasteira. Mas ela me vê como necessário, não se importa e nem leva em conta o meu suposto tamanho. Então me dou por conta que faço parte daquilo tudo. Sou parte, ali, da gente do Piratini Profundo. Ali encontro a minha Xanadu. A antiga Shangdu, a lendária Capital de Verão do Império Mongol, na China, e que foi descrita para nós pelo navegador Marco Polo.

E agora, abro os olhos e vejo

O que temos feito é real

Estamos em Xanadu

 

E percebo, depois de dezenas de clics que tentam aprisionar aquele instante, que fui levado até ali, não para tratar dos assuntos que combinei com a Suzana. Fui guiado até ali para conhecer Dona Claudete e sua sabedoria sem palavras.

            O sonho que veio através de um milhão de anos

   Que vivia em todas as lágrimas, ele veio até Xanadu

 

Não sei se voltei de lá o mesmo. Mas sei que voltei melhor, mais leve e completamente aliviado das preocupações que me chateavam. No retorno, pela sinuosa estrada do Piratini Profundo, “reli” o discurso sem palavras daquela mulher que possui a aura mais poderosa que já vi, pois fui a

 

Um lugar onde ninguém ousou ir

O amor que conheci ali

(nos olhos da Dona Claudete)

Eles chamam isso de Xanadu

 

                              爱与和平                           

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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

1 de outubro de 2021

Adeus, Adão Fernando Monquelat, o guardião dos livros

 

Monquelat, morto no dia 22, também foi escritor, pesquisador e uma
figura cativante e agregadora. Foto Nauro Júnior / Agência RBS

Fábio Schaffner (*)

Como escritório de advocacia, funciona bem a sala 201 do Edifício Manhattan, na Rua General Telles, em Pelotas. O problema é a cozinha. Espalhados por todo o lugar, livros, livros e mais livros impedem qualquer acesso, inclusive à área de serviço, abarrotada por mais de 1 mil volumes. Incomodado, o advogado Pablo Monquelat exigiu providências ao vizinho de baixo, não por acaso seu pai, Adão Fernando Monquelat. Num sábado, Monquelat pai pôs-se a separar as obras de valor comercial das destinadas à doação. Ledo engano. Não conseguia se desfazer do acervo, um excerto mundano perto do santuário que mantinha na loja do térreo.

No dia 22 de setembro, um infarte fulminante abreviou a vida de Adão Fernando Monquelat. O livreiro, pesquisador e escritor estava em casa, preparando-se para o banho, quando sentiu um incômodo. Pediu uma aspirina, ofegou e morreu. Foi sepultado na manhã seguinte, no Cemitério Parque, em Capão do Leão. Deixou a mulher, Nóris, o filho Pablo, os netos Otávio e Celina e as enteadas Raquel e Carolina.

Aos 74 anos, Monquelat mantinha há quatro décadas um dos mais renomados sebos do Rio Grande do Sul, a Livraria Monquelat. Reduto de leitores de variadas estirpes, ali não era preciso saber o nome do livro, do autor, muito menos a editora. Não raro, apenas um breve detalhe da capa já bastava para que o conhecimento enciclopédico do anfitrião remetesse à prateleira certa, à localização exata. Na esteira, surgia uma conversa sobre as sutilezas da obra, a vida do escritor, o contexto histórico. Não era uma compra. Era uma celebração da leitura.

Natural de Pelotas, Monquelat forjou a vocação devorando gibis de heróis, fossem extraterrestres com superpoderes, como o Super-Homem, ou caubóis mascarados à la Kid Limonada e Zorro. A paixão se transferiu aos livros quando a mãe, furiosa por causa de uma nota baixa em latim, pôs fogo à coleção.

Monquelat se formou técnico em contabilidade e cursou Psicologia, mas seu destino era fadado às letras. Morou em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre, foi sócio de transportadora e vendeu terrenos no Litoral Norte antes de voltar a Pelotas nos anos 1980 e abrir a Livraria Lobo da Costa. Apaixonado pela literatura cisplatina, abastecia as estantes viajando a Montevidéu a cada dois meses, em busca de novos autores e raridades consagradas.

Em 1992, tamanha devoção à arte de escarafunchar prateleiras poeirentas rendeu-lhe uma das maiores descobertas da literatura nacional. Monquelat encontrou em Montevidéu um exemplar do mítico A Divina Pastora, de Caldre e Fião. Tido como primeiro romance escrito no Rio Grande do Sul e segundo no país, a obra de 1847 estava desaparecida havia mais de um século, tornando-se objeto de culto entre pesquisadores e literatos.

Muito falada, jamais vista, a “novella rio-grandense”, como denominada na folha de rosto, virou enigma, disseminando dúvidas sobre sua própria existência. De volta ao Brasil, Monquelat festejava ter encontrado “o santo graal da literatura gaúcha”. O único exemplar até hoje conhecido foi vendido por Monquelat ao Grupo RBS, que lançou uma segunda edição e expôs o original. O achado tornou Monquelat célebre no circuito livreiro, levando-o a rebatizar o sebo, agora com o próprio nome.

Monquelat também prestou honrosos serviços como escritor e pesquisador. Simoniano adicto, descobriu textos inéditos de Simões Lopes Neto e até mesmo o antigo casarão em que viveu um dos mais importantes autores da literatura regional brasileira. A descoberta impediu a demolição do imóvel, que hoje abriga o instituto dedicado à memória de Simões.

Monquelat desbravou sobretudo a Pelotas dos desvalidos, escrevendo livros que desnudaram o primeiro ciclo econômico gaúcho. Ao revelar como a tortura imposta aos escravizados por estancieiros ditos abolicionistas financiava o fausto dos saraus pelotenses, expôs a hipocrisia do baronato do charque, cujos filhos estudavam em Paris, mas a riqueza provinha da senzala. Suas pesquisas se estenderam ao patrimônio histórico e à poesia, totalizando 13 obras, entre elas duas incursões na ficção marcadas por uma verve despudorada e iconoclasta.

Era no sebo da Telles, todavia, que ele magnetizava os convivas. Sob a sinuosa melodia das composições de Bach, sentava-se à janela e irrigava a charla com um amargo pura folha, observando por cima dos óculos os clientes perderem o controle das horas, imersos em 40 metros quadrados de estantes abarrotadas de livros.

Monquelat era como a boa leitura que tanto prezava: acolhedor. Vai fazer muita falta.

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(*) Fádio Schffner é jornalista, atua no jornal Zero Hora. O texto foi publicado na ZH dia 30 de setembro de 2021.

29 de setembro de 2021

Eu, o VAZ, naquela época era quase um VAR...

 



Luiz Carlos Vaz (*) 

Quando eu comecei a fotografar, “lá em 1927”, uma das coisas que gostava de fazer era tirar um bom retrato dos times fardados, antes da partida começar. Afinal, seriam possíveis 22 cópias “tamanho postal” para vender e ajudar na compra dos próximos rolos do meu filme preferido: o Kodak Panatomic-X! Era quase uma raridade para achar numa cidade do interior, e que naquela época, eu só encontrava em Santa Maria. Os que havia em Bagé, eu já queimara todo o estoque... e o dono da loja – que era fotógrafo profissional, meio enciumado com meu sucesso, não repunha no estoque da casa justo esse, o filme de 32 ASA, que na hora da ampliação não dava grão nenhum...

Mas havia uma lenda urbana – ou seria esportiva? de que no futebol de “varge”, quem tirava foto antes do jogo, perdia! Levei um tempo, e fui amansando a turma da várzea, e achei a solução: pedia com antecedência para que os dois scratchs posassem para mim antes do juiz apitar o início do match. Naquele tempo não havia árbitro, o cara era o juiz mesmo! Imagino que muitas vezes alguém, desconfiando de um offside deve ter gritado, o guri bateu o retrato do “forfe” impedido, pode ver depois... Eu, o VAZ, naquela época era quase um VAR...

Mas o que eu quero contar mesmo é que agora há pouco ouvi um estardalhaço de sirenes, buzinas e veículos da Brigada Militar fazendo muito alvoroço... pensei logo em uma perseguição de perigosos bandidos e etc, devido à velocidade com que os batedores empreendiam, e pensei cá comigo: É coisa feia. Parei, liguei a câmera para registrar os detalhes, mas, para nooosa alegriaa... era o ônibus do Xavante em direção à Baixada. Imagino que esse aparato todo seja uma exigência das regras pelo fato do G.E. Brasil estar entre os 40 melhores times do País - 39, para ser mais exato, disputando a segunda maior competição esportiva da CBF.

Lembrei logo da lenda urbana (ou futebolística?) de que quem bate foto antes do jogo, perde. Mas também recordei do esforço que fiz, lá do meu tempo de guri, para registrar no celuloide até as imprudências dos foot-ballers dentro do relvado...

Vamos lá, Xavante! Estamos “mal na foto” nessa Série B do Certame Nacional! O espírito do Marcola estará junto com todo o Scratch! Hoje, com retrato antes da partida e tudo mais, vamos vencer o prélio!

“Tókio” é logo ali!


(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog


22 de setembro de 2021

Habemus Primavera!

                                                              Foto Luiz Carlos Vaz

Quero apenas cinco coisas...

 

Primeiro é o amor sem fim

A segunda é ver o outono

A terceira é o grave inverno

Em quarto lugar o verão

A quinta coisa são teus olhos

Não quero dormir sem teus olhos.

Não quero ser... sem que me olhes.

Abro mão da primavera para que continues me olhando.

 

Pablo Neruda




11 de setembro de 2021

Os 130 (?) anos de um 11 de setembro inesquecível

Diadorim, xilogravura de Arlindo Daibert, 1952-1993


Luiz Carlos Vaz (*)

Tudo já foi dito uma vez

mas como ninguém escuta,

é preciso dizer de novo.

Andre Gide

 

Para Ricardo Petrucci

 

            Quando recordamos os “11 de setembro” na história, ou nas nossas vidas, temos sempre alguns desses dias para lembrar ou comemorar em especial; os fotógrafos certamente se referem ao do ano de 1816, ano do nascimento de Carl Zeiss, o cara que revolucionou as nossas lentes; mas há muita gente famosa, claro, que nasceu nessa mesma data. São de 11 de setembro Theodor Adorno, D. H. Lawrence, Valentino Fioravanti, Brian De Palma... mas nesse dia a cegonha também trouxe ao mundo pessoas bem mais populares como Leivinha, Everaldo e Franz Beckenbauer.

            Muitos acontecimentos, da mesma forma, marcam esse dia. Alguns deles trouxeram sorte ou alegria para o mundo. Outros, nem tanto. Talvez o mais triste para os tempos em que vivi tenha sido o 11 de setembro de 1973, quando foi bombardeado o Palácio La Moneda, em Santiago, e que colocou fim na normalidade institucional e democrática do Chile. O que veio a seguir envergonha o gênero humano pela violência, pelas incontáveis e anônimas mortes e sequestros de cientistas, professores, jornalistas, artistas e intelectuais.

            Mas para enfrentar tudo isso precisamos lutar; lutar muito; lutar com as palavras, vencer pelo convencimento das palavras, pela explicitação da verdade contida nas palavras. Nem que se tenha que repetir muitas vezes, pois as pessoas não escutam...

Talvez nenhum homem ou mulher – nascido num 11 de setembro, tenha tido tanta garra, coragem e determinação para viver e lutar por sua causa como Maria Deodorina. Sua vida foi narrada por João Guimarães Rosa com uma fartura de atos de bravura e coragem de dar inveja a muita gente metida a valente que anda por aí; tipo os “valentes de rede social”, como feicibuque, tuíter e uátis, onde se esgotam seus argumentos e atos de suposta bravura.

Conversando outro dia com o amigo Ricardo Petrucci, ele me recordou que Ela também havia nascido nesse dia. Coisa que eu jamais lembraria por ter lido essa história lá nos tempos “da mocidade”.  Deixo então esse pequeno recorte da obra do João para a apreciação de vocês, sobre o achado do registro de nascimento dessa mulher que nunca teve medo.

“Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem  ̶ dela lembrados quando tinha sido menina  ̶ e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Crú, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe  ̶  batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da éra de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins  ̶  que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa alma. O senhor acha que a vida é tristonha?

Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?”

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Em um 11 de setembro da éra de 1800 e tantos nasceu Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Ou terá nascido Reinaldo?
Ou terá nascido Diadorim  ̶  “a mulher dada por Deus”?

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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

25 de agosto de 2021

A mulher do Avon

 

                                          Imagens do Google

Athos Ronaldo (*)

 

Eu não sabia quem era o Seu Avon, mas a mulher dele, seguidamente, aparecia lá em casa para uma longa prosa com minha mãe.

Eram amigas, acho que eram amigas desde a infância, minha mãe oferecia chá com bolachas Maria ou um mate doce. Teve uma tarde que elas detonaram uma jarra de Q-suco de morango com bolachas de água e sal. Naqueles tempos não havia o temor da balança e do diabetes. A mulher do Avon era muito querida, trazia revistas que minha mãe folheava, atentamente, e em outras vezes trazia presentes.

Nos dias de visita – muita das vezes na hora do almoço – a mãe comentava que tinha que preparar algo para esperar a mulher do Avon. O pai não gostava dela, achava uma mala sem alça, decerto tinha lá os motivos dele.

Nos meus dez anos o que importava eram os jogos de futebol no campinho próximo da minha casa, andar na Monareta e assistir Bonanza nos finais de tarde. As amigas da mãe eram, apenas, amigas da mãe.

Mas me intrigava o oculto do Seu Avon. Deveria ser uma pessoa importante, tão importante que a mulher dele não tinha nome, era simplesmente a mulher do Avon.

Certo dia a mãe falou que a mulher do Avon estava doente e foi visitá-la no hospital. No dia seguinte a mulher do Avon falecera. Foi um dia muito triste lá em casa, aliás, em toda a vizinhança.

Quando meus pais voltaram do velório perguntei como estava o Seu Avon – aquela pessoa importante que nunca tinha visto –, afinal, eram amigos da nossa família e eu tinha que mostrar um interesse no acontecido.

– Que seu Avon, guri? – minha mãe devolveu a pergunta.

– A mulher dele não morreu? Ele está bem?

Com um semblante ainda triste, minha mãe sorriu e não disse nada.

E eu nunca fiquei sabendo quem era aquele tal de Avon.

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(*) Athos Ronaldo Miralha da Cunha, santamariense por adoção, é um filho de ferroviário que nasceu em Santiago e estudou engenharia na UFSM. Foi funcionário da "Caixa", participou de algumas antologias, publicou vários livros de contos e já recebeu vários prêmios literários com eles. Contos de Chumbo, pela Chiado Editora; Tintos e contos, O código Locatelli e Sofrendo em Paris, pela Penalux Editora, são alguns de seus livros. Athos, que é um colorado convicto, também está presente no livro de crônicas O gol iluminado, publicado em 2009.

4 de agosto de 2021

Voo Livre: Jaguarão e o Resto do Mundo


Deogar Soares
 (*) 
Crônica para o programa Voo Livre, Rádio Alfa, 1984

   Peguei o livro e fui pra casa, certo de que estava levando comigo meu Jaguarão e o Resto do Mundo. No meio do caminho, mais um obstáculo, uma inebriante ira da memória. Era a lembrança de Irajá e seu livro até hoje inédito, certamente prometido, mas inexplicavelmente não-sabido.

    Da ausência de Mirim, ficou-me um gosto amargo de ressaca naquele balcão de bar, onde perdi o exemplar do Schlee. Não sei até hoje, quem me roubou “Jaguarão” nem o que fizeram com o “Resto do Mundo.”

    Uma quarta-feira é um dia qualquer.

    Deixa de ser quando a rotina das impressões dá lugar a sentimentos inesperados. Foi numa quarta-feira recente, que ouvi, de um estudante de Comunicação Social, a reprodução de um comentário de Aldyr Schlee, a meu respeito:

    -Ele te preza muito como pessoa.

    Ao fazer essa revelação, Eduardo não sabia estar ligando dois importantes filamentos vitais da minha vida. De um lado, o duto por onde se transporta um desesperado esforço, para que me percebam como ser humano cansado dos próprios erros e requerendo, através destes e daqueles, se digne o mundo conceder- me uma relativa paz de consciência.

    Que outros se manifestassem assim, eu teria razões para desconfiar da lisonja. De Schlee, não.

    O antigo companheiro dos tempos de Opinião Pública e Diário Popular, é dotado de incomparável capacidade para descobrir e interpretar a vida, tanto dentro como fora do seu universo existencial.

    Concluo que tenha farejado a minha luta e, talvez tenha se constituído num privilegiado observador das minhas penitências públicas. Tudo sem concessões, como lhe ordenam os princípios.

    De outra parte, o estudante Eduardo religou a linha que me leva a um antigo questionamento. Que eu não tenha lido “Jaguarão e o Resto do Mundo” até que é compreensível. Ninguém está livre de beber num bar a saudade de um cronista morto, de obra inédita, e a ansiedade de sorver em cada página o talento do amigo escritor.

    O que é de bêbado não tem dono, e nem livro escapa dessa máxima. Inexplicável, mesmo, foi a sucessão de vezes em que fiquei diante da vitrina da Mundial, observando (ou observado?) por “Uma Terra Só”.

    Se por vias indiretas Schlee me manifesta tão fraterno sentimento, tanto melhor que, por igual caminho lhe preste explicações. Mesmo residindo na mesma cidade, temos passado meses sem nos vermos.

    Sei, no entanto, que não mudou, que continua mais teimoso que nunca na honrada fidelidade aos seus princípios. E já não basta isso para justificar a vida?

    Meus olhos são profanos, tanto que possam perturbar as páginas de “Uma Terra Só”. Até hoje eu não tinha imaginado isso.

    Entrevista o Schlee! Procura o Schlee!

    Pergunta ao Schlee! E, assim, frequentemente tenho me socorrido nele, a fim de atender a tantos que me procuram em busca de soluções para questões nas quais ele é especialista.

    Tenho certeza, no entanto, que se lhe contasse que um simples vidro, na vitrina da livraria virou um muro dos meus delírios e me separa de sua obra, o mínimo que ele faria era o presente de um exemplar, com exemplar reprimenda, tão a seu gosto, grávida de neurastênicas reprimendas e mordazes comentários.

    Sei de um cronista, que muito deve à caridade alheia e é tão velhaco que abusa da amizade de um escritor, pedindo-lhes livros de graça.

    Mas afinal, pra que servem os amigos?

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Deogar Soares, Jornalista, Radialista, escrevia e apresentava na Rádio Alfa a crônica diária  Voo Livre. Faleceu em 2003.
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No dia do sepultamento do nosso escritor Aldyr Garcia Schlee conversei com uma repórter do Diário Popular, a pedido do Andrey, filho dele, e entre outras coisas contei essa história. O Deogar, lá nos anos 70... foi visitar o Schlee e levou emprestado os originais datilografados do livro do Schlee... entrou num bar e perdeu!!! Ela, e todos que ouviram na volta, ficaram, tenho certeza, pensando que baita mentiroso eu era... aproveitando de duas pessoas que já não estão aqui, e inventando uma história fantasiosa. Lembrei na hora do filme The Man Who Shot Liberty Valance - O Homem que Matou o Facínora, fita que havíamos assistido no ciclo Os filmes de Aldyr Schlee, no IJSLN, e que sempre mereceu por parte dele uma ótima avaliação. Mas, não era hora para pensar no que iriam pensar dessa "lenda".

Pois na segunda-feira seguinte ao fato, o Zé Mosquito - José Carlos Soares (irmão do Felix e do Deogar), levou para o Clayton, no programa 13 horas, essa crônica que ele procurou e achou nas coisas guardadas do "Velho" durante o fim de semana! Ele sabia que havia uma crônica falando no Schlee... e era justo essa. O Deogar havia escrito para sua radio-crônica diária - Voo Livre, na também já falecida Rádio Alfa...

Já eu continuo com a minha máxima: Eu minto muito, mas... sempre mostro as provas!
Luiz Carlos Vaz, Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog
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O livro de crônicas do Deogar foi lançado depois, em 2012, no Café:

http://ecult.com.br/eventos/voo-livre-de-deogar-soares-sera-lancado-hoje25-no-cafe-aquarios