19 de julho de 2010

A menina, a carruagem e a praça

Antiga carruagem em Bagé, em foto enviada pela Dóris Schuch

A menina, olhava sem entender o papel nas mãos do pai. 
Segundo ele, era agora brasileira e nascida em Alegrete.

Como um simples papel poderia tirar seu poder? 
Havia custado tanto aprender a palavra opção! 
Teria o direito de optar por sua cidadania aos dezoito anos. 
Seu pai dissera! Ela, que se julgava de ‘Santana’,
ouvira em conversa de adultos, que nascera em Montevidéu,
e poderia - apitar? - por seu país quando fosse maior. 
Sentia-se poderosa. 
Com o destino nas mãos. 
E agora?
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— Filha vivemos o pós-guerra. Fui transferido para Fernando de Noronha. Não há tempo. A certidão nas mãos do pai gritava: brasileira e alegretense. Seu poder desceu ao calcanhar. Levou junto a auto-estima. Chorou, berrou, sapateou, bateu com a cabeça na parede. Entre soluços: pai, tu disseste que eu escolheria! Mentiste para mim! Fato consumado. Não poderia mais optar. O pós-guerra escolheu. Apitaram por ela.
Em Vila de Coimbra (Mato Grosso), inaugurava oito anos quando ouviu de seu pai: há vaga em Florianópolis e Bagé. Escolhi Bagé, no Rio Grande do Sul.

— Gaúcho é bairrista! Deixar uma capital por aquela cidadezinha. Servi lá. Seu nome lembra um índio: Ibagé. Seria agradável se não fossem as moscas. Bagé é a cidade da mosca! Pontificou o colega baixinho, atarracado. Por que seu pai ia para lugares tão fora do comum? Coimbra em pleno Chaco tinha nuvens de mosquitos. Bagé teria nuvens de moscas? Sonhou que era levada por um batalhão delas. Acordou chorando.

Em tarde de fevereiro a menina chega a Bagé pelo Trem da Fronteira. Esperando um enxame de moscas desce apreensiva do vagão. Encontra gare espaçosa, movimentada e limpa. Atravessa correndo o saguão. Pára perplexa — invadida por luminosidade azul brilhante. Em frente à Estação, a praça. Uma praça grande e simpática, cujos plátanos gigantes parecem filtrar toda luz do mundo no ofertório do pôr-do-sol: malvas, lacres, lilases, púrpuras e laranjas se entrelaçam e beijam. Bebe beleza pelos olhos arregalados. Fica extasiada. A um sinal do pai, move-se, do outro lado, carro puxado a cavalos. Diligência? Carruagem! Tirada por seis cavalos brancos ajaezados de ouro e penachos vermelhos. Ela, princesa com tiara de brilhantes nos loiros cabelos cacheados, prepara-se para entrar. O pai intervém: vai a bagagem. Iremos a pé, é só atravessar. Quase em lágrimas, retruca: Vou de carruagem! O cocheiro que poderia ser psicólogo, não fosse avô: deixe-me levar a princesinha, enquanto os senhores e o menino desfrutam a frescura da praça. Galantemente oferece-lhe a mão. Acomoda-se nos macios coxins. Lenta e majestosamente contornam o largo.

— Sua Alteza gosta da nossa Rainha?

— Que Rainha?


— Bagé! Por sua beleza nossa cidade é chamada Rainha da Fronteira. Fecha os olhos. Vê-se princesa índia. Filha da Rainha da Fronteira com o Índio Ibagé. Decide: esta é a minha cidade. Quem se julgava nômade e sem Pátria, escolhe seu chão. Cria raízes instantâneas. Ao pararem, o cocheiro posta-se em ajuda a infante da corte. Salta princesa índia de lança em punho, com longo cocar azul a beijar-lhe os pés, gritando a plenos pulmões: sou de Bagé. Esta é a minha cidade! Antes que os atônitos adultos possam esboçar reação, pula em pêlo num cavalo tão negro quanto sua cabeleira e saiem disparada. Cavalga pela praça entoando canto de vitória — Iá, Iaaáá. Sou de Bagé. Iá, Iá, Iá . Sou de Bagé. Iá, Iaaáá! Crava, com único golpe, firmemente sua lança ao solo. Cai de joelhos. Abarca grande porção de areia que joga para o alto. Nesse batismo — primitivo, selvagem e solene — readquire seu poder.
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Sarita Barros
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Crônica para os 199 anos de Bagé
publicada no jornal eletrônico Rio Total,
e enviada ao Blog pelo colega Jerônmo
- o irmão da professora Sarita.

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9 comentários:

Unknown disse...

Sarita Barros; Sarita Terra; Como é bom saber escrever. Lindíssima; Parabéns.

jeronimo disse...

Vaz!
você se superou, mesmo.
Onde foi encontrar essa foto com a carruagem? Excelente.
Sarita tem um amor muito grande pela nossa "Rainha da Fronteira".
Ela e a Sônia Alcalde (um ícone do movimento cultural de Bagé/Patronese da XII Feira do Livro)realizaram o Festilenda. Um festival de contos e poesias sobre as lendas de Bagé. Movimentou a cidade e resgatou sua história.
Um abraço!
Jerônimo!

Anônimo disse...

Beleza de texto, parabéns à autora.
No canto à esquerda se vê, mal mas é ela, a enorme magnólia que seria derrubada na década de 70.
Abraço
Gerson L. B. Oliveira

Luiz Carlos Vaz disse...

Jerônimo, e a carruagem está em frente ao (futuro) ESTADUAL...esse é o detalhe curioso! A foto pertence a um conjunto que me foi enviado pela Dóris Schuch.

Luiz Carlos Vaz disse...

E o Gérson, claro, sempre lembrando da fantástica Magnólia da "Padaria Sul Brasil", ou "Esquina Bianchetti", para os mais novos...

Anônimo disse...

Gurisada medonha! Fizeram a véinha se mexê!
Agradeço ao Pedro, Gérson, Jerônimo,Olmiro,Vaz e Ézio (que me enviou este endereço e autor do belo texto A MODÉSTIA DA RAINHA)

Vaz, este blog está muito bom, veio preencher uma lacuna. A gente nota o teu carinho em cada detalhe.

Lembro da padaria quando ficava na esquina onde agora está o prédio do Aracely. No recreio a gente pulava o portão que separava o Espírito Santo do São Francisco para comprar bicicleta quentinha na padaria. Um dia a Irmã Fidélia nos pegou e foi aquele auê! Depois que ela foi para onde é o Nacional,não deu mais...
Abraços,
Sarita.

Anônimo disse...

Complementando: aquela magnólia era mesmo um monumento! Deveria ter sido tombada, assim como merece ser preservado aquele plátano do Dr.Contreiras. A foto foi um achado! Creio até que é anterior à padaria, pois as colunas à esquerda dão a impressão que estavam no lugar onde seria construída a Esquina Bianchetti. Será?
Särita Bárros.

Luiz Carlos Vaz disse...

Oi Sarita! Prazer em "vê-la" por aqui!!! Acho que podes mandar mais uns textos para o Blog... E fotos? Deves ter vááárias... Que achas? Tens que te tornar uma seguidora do nosso blog. Abs, Vaz.

Manoel Ianzer disse...

Amiga Sarita, o seu amor por Bagé nos entusiasma e nos dá inspiração
para poetizar a Rainha.

Sarita Barros no blog Bagé e suas raízes:
http://bagealemfronteira.blogspot.com/2007/12/bag-e-suas-raizes.html